11 poemas por Jarid Arraes

20/05/2020

 

Para a coluna de maio, Jarid Arraes selecionou 11 poemas de sua autoria. Entre eles, estão alguns inéditos.

Fábula

desistir é coragem difícil
somos programados
para tentar

deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários

é preferível morrer
sorrateiramente
em gorduras
açúcares
refluxos
pedras nos órgãos
no peito

mas desistir
essa é uma coragem
que todos
não temos

***

duas cadeiras

conte para mim
sobre como tudo anda difícil
e nem a cerveja se paga
e nem a escrita se cria
me conte

sobre os imprevistos
e as curvas fechadas
sobre os livros
abandonados
as exposições vazias
de significado

me fale sobre a rotina
que esmaga
com as palavras que
sempre as mesmas
se usa

e sobre a cidade cinza
os rios espumantes
o quilo de sal
caro
que se come
me conte

sobre as temperaturas
altas e os corações
apáticos
sobre as relações
de supermercado
os produtos
políticos

eu quero ouvir
sobre as pequenas vidas
os pequenos instantes
de vida
que ainda resistem

***

falsete

toda autoridade
nega
a liberdade
arranca-lhe os dentes
pendura-lhe no espeto
e espera

depois de algum
tempo
meia hora cinco vinte dias
quatro meses sete anos a variação
é curiosa
depois de algum
tempo
a liberdade então
canta

***

uma mulher pergunta

há tardes e pequenos espaços
de tempo
em que uma mulher pergunta

de que adianta

se as mãos dos homens
dirigem o metrô e os ônibus
os carros blindados
as motos que serpenteiam
entre corredores breves
se as mãos
dos homens
assinam os papéis e carimbam
autorizam o prontuário
a entrada e a saída do corpo
o reconhecimento dos órgãos
doados
se as mãos dos homens
orquestram as violências
balas esporros olhares
e tocam seus instrumentos
fálicos curtos enrugados
colocados para o lado
se os homens e suas
mãos
discam os números
estabelecem os valores
fazem listas de nomes
de outros homens
e se as mãos dos
homens
alcançam todas as coisas
que quebram ou selam
acordos
e apertam botões
que começam guerras
internas
por muitas e muitas
gerações

há um dia em que a mulher
pergunta a si mesma
pergunta para outra
mulher
e as perguntas pairam
flutuam
sobre a cabeça
as perguntas incomodam
e vazam como excremento
de aves de árvores de céu

nesse dia a mulher procura
a resposta
por que de que adianta
se há mãos que fazem dançar
as cordas
e os pequenos membros
do corpo vivem em sacolejo
o ventre morre em liminares
gestações que formam mãos
de homens

e a partir do ventre
as mãos nutridas pela mulher
saem na direção do mundo
de tudo que é externo
de tudo que é global
antropológico
fágico
e social

e a mulher nesse dia pergunta
para outra mulher
para o espelho

de que isso tudo
adianta

***

alavanca

em um ambiente controlado
branco antiséptico
esterilizado
uma mulher arrancou meu dente

enquanto ela puxava

depois de três agulhas
anestésicas
e enquanto eu escutava
os sons do dente resistindo

eu pensei na resistência

arrancar dentes
arrancar unhas
infeccionar a mente
quanta gente

fez possível uma poeta

me comoveu a extração
do meu dente molar
e agora quando sorrio um buraco é político

***

chaotic neutral

declaro a quem possa
digerir
que certos princípios
perderam
seus fins

já não me importa
estar em postura
composta

a partir desta linha
os meios
me atravessarão

***

desejo um mundo

desejo um mundo em que
seja fácil
ser só

em que os porteiros
não deem bom-dia
boa-tarde
não me olhem
boa-noite

um mundo em que
a farmácia
seja um de cada vez
sem os toques
dos corredores
sem o deseja a revista
apoiar as crianças
o câncer
moedinhas aqui
já tem cadastro
fidelidade senhora

sem tempo para
sorrir sem
graça

não
obrigada

desejo um mundo vazio
de amenidades
feito de explosões
terremotos
tufos de cabelo
terra nos olhos

um mundo
desmesurado
todo mato
algumas cabras
latas vazias

um mundo sem frutas
sem matérias
reportagens
sobre colesterol
glicose
taquicardia

desejo um mundo
sem filosofia

animalesco
cheio de pelos
as garras afiadas
visão noturna
instinto
de fuga

desejo um mundo
do qual eu possa
fugir

***

nunc obdurat et tunc curat
(para beatriz nascimento)

1439 lugares
e eu era a única negra

há espíritos fortes que falam
de racismo
enquanto assistem carmina burana

[eu quebro]

o primeiro ato
é o roubo

quero escrever coisas outras
pássaros vaginas janelas o clima
as lentes o detergente

roubaram de mim
de você desse lápis
desse teclado
a escrita da poesia qualquer

enquanto o cérebro
escurta o circuito
a medicação tropeça
enquanto sou como todas
as outras poetas

fui roubada

quero sofrer como todos
os loucos
e das palavras que surtam
peneirar
a estética

mas se atente
ao movimento
dos furtos clássicos
históricos e afinados

entre todas essas que versam
um papel me foi restado

quantas negras eu questiono
o que escrevem
essas negras

o primeiro ato
é sempre um trato

assinei esse papel
de única e exceção
e agora minhas frases
são fronteiriças

e beatriz eu só queria
escrever sobre as paredes
os olhares e as cadeiras
os baralhos os abismos

1439 lugares
e eu era a única negra

eu deveria estar feliz
porque ocupei esse espaço
montei essa ocupação
solitária
de uma bandeira
parda

[eu quebrei
em mil pedaços]

eu deveria estar feliz
mas beatriz eu só queria
escolher uma poesia
beatriz eu só queria

como todas as poetas
as negras também
surtam

mas o primeiro
ato
é sempre uma
pergunta

onde estão as
negras
onde estão
as negras

[onde estão as negras]

***

a torre

minhas paredes
desabaram

– só se ouviu
o som –

oitocentos reais
de tijolos cimento
azulejos rejunte
branco

– as paredes
foram
desabando –

como todos
os grandes
muros

políticos
protetivos
cativos
coloridos
mijados

– onde se escoram
os cansados –

minhas paredes
cumpriram
seu tempo

***

asas

feito gato
atiçado
por todo meneio
rápido
eu também sou
atraída
pelos insetos
que se atiram
contra a luz

essa é a utilidade
e o fim
das asas

***

meio do céu

conclamamos os astrólogos
as tarólogas ofertamos nossas
patas à leitura e sobramos na
borra do café porque somos
os únicos bichos preocupados
com o futuro

no entanto
saturno
pode ser apenas pedra
e júpiter pedra
e urano e mercúrio e marte
também a mais pura e
gravitacional rocha
os oceanos sofrem a influência
da lua porém nossos corpos
comportam marés bravias
e o universo não tem assunto
com isso

somos menos que o grão moído
nada nutrimos e causamos
apenas vícios
somos menos que uma concha quebrada
porque o papel da concha
não é adivinhar o porvir
mas se pisada e partida e se nenhuma
metáfora de vida puder ser encontrada
a concha existe e nada espera
porque isso se basta

mas nós aguardamos
balançamos as pernas
queremos compreender
escritos
sobre a casa 2 e vênus
em peixes
queremos o carisma dos melhores
signos e a capacidade de vingança
dos animais peçonhentos

temos a identidade
fragmentada
por mitos
por estrelas que morrem paralelas

buscamos as cartas
as runas búzios moedas as linhas
das palmas os exames caseiros de gravidez
as revistas do joão bidu
queremos o futuro entregue
mas não qualquer presságio

somos ingratos com o acaso
brincamos com a envergadura da nossa força
inutilizada pela ânsia
pelos corações apressados batendo tambores
lendo papéis pelas ruas
esperando pelo amor que seja devolvido
contando os dias a partir da palavra
da mais teatral
feiticeira
do mais serpentino pastor

cortamos nossas raízes e estamos perdidos
acreditamos no contrário
traçamos conjunções e plutônicos
dizemos que somos os mesmos que
todos os outros milhões
de antepassados

mas veja bem
talvez sejamos
talvez não estejamos
tão escandalosamente
errados
estamos mesmo
com o futuro
todos muito
preocupados

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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