5 razões para ler "Desonra", de J.M. Coetzee, em clubes de leitura

10/06/2019

 

1. Com a pena afiada, marcada pela concisão formal e pelo tom seco do narrador, J.M. Coetzee retrata como ninguém em Desonra (1999) uma sociedade fraturada pelo ambiente do pós-apartheid na África do Sul (que terminou em 1994), na qual a atmosfera sufocante parece não dar espaço a relações afetivas plenas. A violência marcada por décadas de segregação racial promove nas relações sociais uma espécie de cataclismo cotidiano, uma guerra velada.

2. David Lurie, protagonista do romance, é um professor universitário solitário, desencantado com a massificação cultural, que leciona literatura romântica, com enfoque em Lord Byron, para um grupo de estudantes bastante desinteressado. Contrastando com suas inclinações românticas e seus arroubos de esteta, presentes em suas aulas e seus gostos artísticos, Lurie é um homem frio que, depois de dois casamentos frustrados, tem seus momentos de maior satisfação e glória em encontros com uma prostituta chamada Soraya. Tíbio em seus relacionamentos afetivos, mas obcecado em saciar seus desejos, David Lurie, ao descobrir que Soraya mantém uma vida dupla, sendo também casada e mãe, passa a ser sumariamente ignorado pela profissional. Isso faz com que o professor comece a investir insistentemente em uma aluna, Melanie. O caso que passa a ter com a estudante pode enredar o leitor em discussões intrincadas e bastante atuais acerca das relações de poder, status, autoridade, consentimento e gênero que envolvem a maior parte dos casos entre docentes e alunos. Esse caso levará Lurie a ser acusado de assédio sexual por Melanie — por causa da pressão de seu pai e seu namorado, a jovem acaba denunciando o professor.

3. Afastado da faculdade, Lurie passa um tempo na casa de campo onde sua filha Lucy mora. Lucy é homossexual, independente, e cuida de uma fazenda com auxílio de Petrus, seu antigo empregado e agora sócio, um negro oriundo da nova classe média da África do Sul pós-apartheid. Ela vive do cultivo e da venda de flores e produtos do campo na feira local e também de seu hotel para cães. Sua fazenda fora uma comunidade rural, da qual Lucy e sua companheira Helen faziam parte. Com a partida de Helen por tempo indeterminado para Johanesburgo, Lurie vai se hospedar no quarto da companheira de sua filha. A partir desse momento, Coetzee explora os abismos profundos de uma sociedade ainda marcada pela segregação e pelo ódio, com seus conflitos raciais, de costumes e geracionais, entre os gêneros e as relações familiares e seus intrincados e ambíguos arranjos. Não é o caso contar aos leitores os desfechos violentos, trágicos e cruéis que esses conflitos vão ocasionar, mas afirmo que a desventura que os leitores têm em mãos com Desonra não deixa de traçar um rico painel das relações difíceis e deterioradas vividas por personagens que parecem de carne e osso, em uma sociedade em que a comunicação humana e as relações afetivas não dão conta de quebrar as barreiras construídas por décadas de segregação.

4. A narrativa de Desonra é muito rica, com um narrador não onisciente, cru, que acompanha passo a passo as desventuras do protagonista, que lembra de perto a narrativa kafkiana, embora não tenha nenhum elemento absurdo ou fantástico na trama. Narrado no presente, como boa parte dos livros de J.M. Coetzee, o romance faz com que a densidade psicológica brote das ações dos personagens. O discurso indireto constante permite que o narrador emita juízos sobre os fatos narrados e acerca dos personagens, ora como uma voz distanciada e seca, ora confundindo-se com a própria voz de Lurie, e até mesmo misturando o discurso indireto com o indireto livre. Os períodos são curtos; e os diálogos, frios e contidos.

5. J.M. Coetzee recebeu inúmeros prêmios, dentre eles o Nobel de literatura, em 2003. Premiado na França, na Irlanda e em Israel, foi o primeiro autor agraciado duas vezes com o Man Booker Prize.

                                                                                                                                                                ***

Pedro Schwarcz é ator, formado no curso profissionalizante do Teatro Escola Célia Helena, e coordenador dos Clubes de Leitura Penguin-Companhia. Trabalhou nos espetáculos Querô, uma reportagem maldita, de Plínio Marcos, com o Grupo Folias, dirigido por Marco Antonio Rodrigues; Medida por medida, de William Shakespeare, também com o Grupo Folias, dirigido por Val Pires, entre outros.

 

Pedro Schwarcz

Pedro Schwarcz é ator, formado no curso profissionalizante do Teatro Escola Célia Helena, e coordenador dos Clubes de Leitura Penguin-Companhia. Trabalhou nos espetáculos Querô, uma reportagem maldita, de Plínio Marcos, com o Grupo Folias, dirigido por Marco Antonio Rodrigues; Medida por medida, de William Shakespeare, também com o Grupo Folias, dirigido por Val Pires, entre outros.

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