A cara dos livros -- ou tem uma capa olhando pra mim

13/04/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Uma das partes do meu trabalho que me dá mais prazer é o de ver o livro ganhar uma “cara”. No passado isso ocorria bem ao final, quando o texto já se encontrava editado, prestes a sair. Para os departamentos de vendas e divulgação isso significava um corre-corre, já que o livro precisa necessariamente de uma capa para ser divulgado e colocado à venda. De certa maneira, esse processo fazia sentido. Naquela época, a editora só conseguia visualizar a cara da obra depois de terminado todo o processo de edição, depois de conviver intimamente com o texto e quando o livro estivesse totalmente acabado. Os tempos, em vários sentidos, eram outros.

A partir do meu contato mais íntimo com editoras estrangeiras, principalmente com aquelas que passaram a comprar direitos internacionais de livros brasileiros, pude ver que em outros locais o livro ganha uma identidade visual bem mais cedo. Quase no instante em que um texto é contratado, o editor que adquiriu o novo rebento literário é responsabilizado por pautar o departamento de arte com as informações que o fizeram apostar naquele livro. É feita uma primeira versão da capa, e assim o editor e todos na editora passam a conviver com o visual do livro meses antes do público. É muito comum entrar na sala de um editor, ou de um profissional de marketing, e ver uma prova da capa do livro que só sairá dali a alguns meses. A capa está viva, enquanto o texto ainda está sendo traduzido ou burilado pelo seu autor ou tradutor. A versão final da capa poderá sofrer modificações, mas ela começa a nascer junto com o livro.

Essa discussão tem mais decorrências do que apenas aquela relacionada ao aspecto prático de cronograma editorial. Diz respeito também a quanto a identidade visual de um livro deriva exclusivamente do texto. Ao pararmos para pensar na influência da ordem em que as coisas são confeccionadas, ao menos na lógica da produção editorial, colocamos também em debate se uma capa deve servir exclusivamente ou majoritariamente aos desígnios do marketing editorial e aos chamamentos do mercado.

A cara do livro nasce exclusivamente do seu texto, ou ao contrário, ela pode condicionar indiretamente o trabalho do autor, ao ficar na mente do editor antes mesmo de o livro estar finalizado? Há um pecado de super contaminação comercial no design antecipado, ou este pode servir para clarear as ideias futuras do editor, e até dos autores, visando um trabalho conjunto mais adequado?

As respostas a essas indagações dependem do bom senso. Fazem parte de um delicado equilíbrio que está em jogo, diariamente, em nossa profissão. A questão mais profunda diz respeito a quanto um livro pode ser puramente subjetivo, artesanal ou artístico, ou se faz parte, ao mesmo tempo, de uma rede comercial que envolve editoras, livrarias e consumidores? Ou ainda: como os editores podem ser respeitosos com todos esses elementos singulares da ficção e da produção editorial de qualidade, e fazer, conjuntamente, um trabalho digno num mercado em que a competição por exposição e sucesso é cada dia mais selvagem?

Um bom editor precisa saber se equilibrar sobre esses fios estreitos e delicados e, assim, realizar eticamente seu trabalho, incluindo nessa ética o aspecto gráfico. Para os que pensam que o design é feito só de decisões criativas ou estéticas, sinto informar que há ética nele, sim, assim como em aspectos aparentemente menores de nosso trabalho e do nosso dia a dia. As pequenas e as grandes decisões que tomamos envolvem, sem nos darmos conta, pequenas e grandes indagações que, por vezes, ficam em nosso inconsciente, aparentemente em silêncio.

A capa antecipada responde em grande parte ao novo formato que as vendas têm hoje; faz parte de um mundo onde a compra futura, ou virtual, é uma realidade. Adquirimos diariamente produtos que ainda não existem materialmente. No cotidiano de um editor, imaginar um livro ainda não feito é a tarefa mais comum. Temos que comprar projetos de livros, apostar em ideias ainda não realizadas -- o que é complicadíssimo em um ofício no qual o como é tão fundamental. Assim, da mesma forma que se tornou natural termos que imaginar os livros a priori, nada mais corriqueiro ter que logo pensar e criar a sua identidade visual.

Mas que cara deve ter um livro? No mundo ideal, ela deveria ser neutra a ponto de permitir que cada leitor crie em sua mente a imagem do livro que leu. Nos posts iniciais desta série expliquei como acredito na ideia de que a leitura constrói o livro tanto quanto a escrita. Uma identidade visual muito definida, sem espaço para a imaginação, é pouco respeitosa para com os leitores -- não entende a leitura enquanto parceria. Para quem leu meu segundo texto, a pergunta que faço agora é: onde ficam as entrelinhas das capas?

Essa é uma pergunta difícil de responder, mas em princípio diria que quanto menos imagens ou definições figurativas a capa tiver, maior será o respeito à imaginação do leitor. Eu mesmo, no começo da Companhia das Letras, cheguei a proibir capas em que o rosto dos personagens aparecesse com clareza e definição. Ao estampar uma feição clara na capa de um livro de ficção estamos a princípio definindo o personagem para nossos leitores -- um pecado sério dentro da filosofia editorial na qual acredito.

Com o tempo essa regra se afrouxou um pouco, a editora cresceu, e ficou difícil manter com a mesma rigidez esse critério geral. Confesso que ainda hoje, editando mais de um livro por dia, dos mais diversos tipos, estranho quando uma capa olha para mim e não eu para ela.

Talvez essa questão esteja no cerne de uma ambiguidade profunda do meu ofício. Os livros de literatura de qualidade, que são os que mais me dizem respeito, em princípio permanecem artesanais -- obras individualizadas por seu caráter artístico e profundo, mas também por seguirem um caminho próprio nas mãos e na imaginação de cada leitor. No entanto, eles precisam de um sistema de mercado para serem distribuídos, e assim viram produtos. Na minha juventude estudei e idolatrei os teóricos da escola de Frankfurt que criticavam a reprodutibilidade das obras de arte. Hoje contribuo com esse sistema. Gilberto Vasconcellos, com quem convivi na Fundação Getúlio Vargas, na época da faculdade, disse certa vez, e com algum escárnio: “os alunos que liam comigo os livros da escola de Frankfurt hoje estão nos postos de direção da indústria cultural”. Embora não tenha sido aluno do famoso Giba, tive muito contato com ele na FGV e sei que a crítica era também dirigida a mim. Hoje aceito as regras de mercado, entendo que uma obra-prima de Drummond ou de Amós Oz vai disputar espaço nas livrarias com produtos puramente comerciais, com editores e designers que nunca se sentiram mal ao apelar para qualquer subterfúgio de marketing, entre eles o de esmagar a imaginação do leitor.

Por isso, por exemplo, acabei aceitando que a capa de Neve, de Orhan Pamuk, apresentasse uma mulher encarando o leitor com olhos bem mais abertos que os nossos. E tenho que confessar que a capa, além de linda, foi das mais bem-sucedidas da história da editora. Fez o livro vender. Seria então válido o afrouxamento dos princípios que defendo? Não sei responder. Nesse caso tive que me convencer de que o olhar da moça da capa era tão adequado ao conteúdo do livro que eu deveria me abrir para ele, aceitá-lo.

A capa certa é aquela que mais se aproxima da alma do livro; aquela que permite que o carisma do qual já falei em outro momento se propague, até alcançar o interesse dos leitores. Se o designer buscar ou respeitar esse carisma, fará o livro falar por si próprio, criará um entendimento visual para o texto que o complementará -- e com isso será também um parceiro do autor.

Para chegar a esse entendimento ou parceria visual, o editor e o capista precisam saber domar as contradições espinhosas da produção editorial no sistema de mercado em que vivemos. Literatura é arte, mas é também produto. A parte artística é responsabilidade e mérito do escritor. O negócio é a parte que nos resta, mas não é demérito, principalmente se feito com compreensão e respeito.

A concorrência selvagem que caracteriza o mundo dos livros de hoje, em que há um excesso enorme de livros com relação ao número de leitores neles interessados, tende a tornar a delicadeza cada vez mais rara. O caminho mais fácil é tentar vender a todo o custo, esquecendo-se de muitas qualidades particulares dos livros. Fechamos o espaço da leitura se nossos propósitos comerciais desrespeitam a imaginação do leitor, se perdemos a mão e pendemos demais para o lado comercial. É bom lembrar que o livro é bem mais complexo do que simples produto de entretenimento.

Theodor Adorno, em seus tempos mais radicais, não aceitava que a música clássica virasse produto de massa, através da gravação e prensagem de concertos de música erudita. Era, portanto, contra os discos que começavam a invadir o mercado. Dizia que ouvir uma sinfonia numa vitrola era como ir para a cama com um retrato. Não há mais espaço para discutir a legitimidade da transformação da literatura em produto de massa, da qual me coloco muito mais como defensor do que eventual crítico. Mas quem sabe ainda podemos tentar fazer com que cada leitor vá para a cama com um retrato a ser guardado em sua imaginação e não estampado, por antecipação, na capa dos livros.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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