A obrigação de aguentar

18/07/2018

Foto: Alf Ribeiro/ Shutterstock.com

 

Mudar a história não é algo que se faça todo dia. Mudar a história ao mesmo tempo em que se luta contra um câncer em estágio avançado, então, é algo que requer uma Rachel Carson.

Em 1962, a bióloga americana lançou o livro Silent spring (Primavera silenciosa, editado no Brasil pela Gaia). Nele denunciava que o uso indiscriminado de DDT e outros pesticidas nos Estados Unidos estava arrasando os ecossistemas no país inteiro, matando pessoas e colocando vidas humanas em risco. Fruto de uma pesquisa meticulosa, com casos coletados na literatura científica, nos serviços públicos e em conversas com pessoas afetadas e outros cientistas, o livro inaugurou o ambientalismo moderno. Pela primeira vez, os perigos da contaminação química por moléculas desenhadas por seres humanos para matar outras criaturas eram expostos.

O mundo vivia então a fase de euforia do pós-guerra, na qual a produção de alimentos precisou crescer de forma acelerada. E a indústria química atendeu prontamente ao chamado dos governos para fornecer os insumos para esse crescimento, redirecionando suas linhas de produção da fabricação de armas e munições para a de produtos agrícolas.

A lógica industrial, porém, padecia da total falta de controle da sociedade. “Permitimos que esses produtos químicos fossem usados com pouca ou nenhuma investigação sobre seus efeitos no solo, na água, na vida selvagem e no próprio ser humano”, escreveu Carson. “As futuras gerações dificilmente serão condescendentes com nossa falta de prudência.”

A quantidade de evidências coligidas pela bióloga e seu estilo narrativo extraordinário tornaram Primavera silenciosa um fenômeno e forçaram o governo dos EUA a tomar uma atitude. Sete anos depois de sua publicação, o DDT foi banido para uso agrícola. Hoje uma série de compostos da mesma classe, os chamados organoclorados – venenos como o aldrin, o dieldrin, o endrin e o heptachlor –, são proibidos no mundo inteiro por uma convenção internacional. Agrotóxicos são agora tratados pelo poder público como qualquer veneno deveria: com regulação estrita e análises de periculosidade e risco. As empresas, por sua vez, passaram a desenhar pesticidas cada vez mais específicos para as pragas-alvo e menos mortais para humanos. Rachel Carson não viu nada disso acontecer: em 1964, acabou sucumbindo a um tumor de mama em metástase.

Como era previsível, Primavera silenciosa não foi bem recebido em todos os círculos. A indústria química americana lançou uma onda de ataques à autora: editoriais chamavam-na de “histérica” e de “sacerdotisa da natureza”, enquanto pesquisas pagas pelas empresas tentaram (em vão) refutar seu trabalho.

Ela sabia que o ataque viria: “Quando o público protesta, confrontado com evidências óbvias dos resultados danosos da aplicação de pesticidas, é alimentado com pequenas pílulas tranquilizantes de meia-verdade”, escreveu no segundo capítulo, que ela conclui com uma frase lacrante: “A obrigação de aguentar nos dá o direito de saber”.

O alerta de Rachel Carson segue atualíssimo, 56 anos depois. No Brasil, por exemplo. No final de junho, uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que flexibiliza o registro de pesticidas no país. O Ibama e a Anvisa, que hoje fazem as análises de periculosidade dos agrotóxicos, passariam a ser instâncias meramente homologadoras de testes feitos pelas fabricantes desses produtos. E venenos ganhariam registro temporário para uso no país caso essa homologação não ocorresse após 30 dias (para comparação, hoje um novo pesticida leva até quatro anos em testes para ser registrado na Europa).

A comissão especial, cuja maioria dos integrantes é da chamada bancada ruralista, aprovou o projeto ao arrepio da ciência: Ibama, Anvisa, Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer e sociedades científicas apontaram problemas sérios no texto. Ambientalistas e celebridades se mobilizaram contra a proposta com velocidade inédita, colando-lhe o apelido de “PL do veneno”.

A contrarreação não tardou. A máquina de propaganda do "agropop" foi acionada para tachar os artistas e ongueiros de “desinformados”, “obscurantistas” e “propagadores de fake news”.

Os ruralistas vêm sendo auxiliados, aparentemente de graça, por uma rama de ignorantes voluntários, praga especialmente resistente que anda se disseminando no país. Um desses comentaristas chegou a sugerir que a oposição ao PL do veneno atenta contra o meio ambiente, pois a mudança na lei seria necessária para permitir a entrada no país de pesticidas mais modernos e, portanto, menos tóxicos (balela: o governo tem instrumentos para acelerar o registro de produtos novos, não usa porque não quer).

Críticas desse naipe ao ambientalismo – que obviamente exagera um tanto, mas acerta mais do que erra – viraram uma espécie de identificador tribal de conservadores de todas as idades, uma modinha que começou nos Estados Unidos e foi alegremente importada no Brasil. Uma das vítimas dessa voga, quem diria, é a própria Rachel Carson.

Gente que nunca leu Primavera silenciosa aponta que ela previu “epidemias de câncer” e extinções que nunca se materializaram – ergo, ambientalistas não acertam nunca nas previsões catastróficas etc. O que falta nesse raciocínio é a constatação óbvia de que os piores cenários frequentemente não se concretizam porque gente como Rachel Carson estava lá para dar o alerta, para começo de conversa.

O debate sobre o PL do veneno será travado intensamente nos próximos meses no país. Muita coisa mudou na indústria em 56 anos, mas a lógica de privatizar os ganhos e socializar os riscos, exposta por Carson, segue mais ou menos a mesma (enquanto este post era escrito, a imprensa revelou que o relator do projeto de lei é dono de empresas que comercializam agrotóxicos). A obrigação de aguentar nos dá o direito de saber. E de agir.

 

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornalFolha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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