A coleção Arquivos da Repressão no Brasil reúne, provavelmente pela primeira vez no país, jornalistas e historiadores dispostos a pesquisar e contar as histórias de um período ainda muito próximo — os anos da ditadura militar brasileira. Nenhuma pesquisa será suficientemente grande para responder plenamente a todas as perguntas sobre tal passado. O que a coleção pretende é algo mais modesto: levantar mais pistas, investigar o que aconteceu e confirmar aos brasileiros a veracidade de acontecimentos e suas circunstâncias.
Nos dias que correm, os anos 1964-1985 ganharam novos contornos. A ditadura militar se converteu em objeto de disputa por lideranças, movimentos organizados e partidos políticos, todos eles fortemente reacionários, com disposição para adulterar fatos históricos e adequá-los à sua conveniência ideológica. Fraudar fatos é uma boa maneira de se investir contra a democracia. A História tem função estratégica em nossa vida pública. Ela define um referencial concreto e rigoroso para averiguação dos fatos que se relatam, indica a relevância das evidências que tornam esse fato verificável e deixa claro que fato histórico não é invenção. Afinal, se a confiança na veracidade histórica for eliminada, as pessoas acreditam no que é mais conveniente; tudo se resume a uma questão de opinião e à melhor versão em curso — é o passado às avessas. É fácil entender o que esse problema significa para o funcionamento da democracia: quando as linhas divisórias se tornam indistintas, deixa de existir uma base factual para se questionar o poder.
Os autores dessa coleção procuram por aquilo que Hannah Arendt chamou de verdade factual. A verdade factual é a ostentação pública de fatos que não podem ser modificados pela vontade de quem ocupa o poder, nem podem ser demovidos a não ser por força de mentiras cabais — por essa razão, seu contrário não é erro, ilusão ou opinião, e sim falsidade deliberada, mentira. Informar ao público aquilo que ele tem o direito de saber possibilita, a todos nós leitores, pensar e fazer a vida pública em um país nem sempre fácil de ser compreendido. Narrar o que eu não vi e nem poderia ter visto para fazer ver ao outro e provocá-lo à reflexão sobre o que ocorreu no passado não é uma técnica, mas uma ética própria ao ofício do historiador. Fornece as condições de conhecimento para que o cidadão compareça ao mundo público, em que são tecidas as opiniões compartilhadas pela sociedade. São procedimentos constitutivos da cultura política democrática e uma proteção eficaz contra a usurpação do poder por uma pessoa ou por um grupo político.
Se o tempo presente é nosso principal desafio e se temos hoje uma democracia frágil, conhecer o passado é uma das melhores maneiras de enfrentar esse risco. Também para isso servem as histórias contadas pelos livros da coleção Arquivos da Repressão no Brasil. Elas nos lembram do brasileiro que fomos e nos fazem pensar no brasileiro que deveríamos ou poderíamos ser. E, principalmente, revelam um país que tem um passado e que precisa indubitavelmente ser melhor do que é hoje.
E tudo isso tem um propósito. Serve para pensarmos sobre o que estamos fazendo agora.
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Conheça os títulos já publicados da coleção:
Lugar nenhum: Militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura, de Lucas Figueiredo
Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura, de Rubens Valente
Tanques e togas: O STF e a ditadura militar, de Felipe Recondo
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Heloisa M. Starling nasceu em 1956. Historiadora e cientista política, é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pela Companhia das Letras, publicou Brasil: Uma biografia (2015), com Lilia Moritz Schwarcz, e Ser republicano no Brasil Colônia (2018). Também é autora de um dos ensaios de Democracia em risco? (2019).