As traduções queridas

27/01/2020

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Moonshadow é brega. Sim, é brega. As aquarelas do Jon J. Muth podiam assustar trinta e cinco anos atrás, na época do Sal Buscema e da impressão desencontrada, só por serem aquarela. A prosa circular do J.M. DeMatteis sobre os sofrimentos do jovem onanista – há um longo capítulo sobre masturbação (o que causou num gibi da Marvel, trinta e cinco anos atrás) – é melosa, grudenta, palavrosa. Moonshadow não seria publicada hoje. Os quadrinhos continuam cheios de homens brancos reclamando da vida, mas esse Moonshadow… tenha dó.

Foi isso tudo que eu amei em Moonshadow na primeira vez que eu li, há mais de vinte anos. É tudo que eu ainda amo em Moonshadow.

E é tudo que eu lembrei que amava em Moonshadow quando tive oportunidade de traduzir Moonshadow, no ano passado. Aquele mundo meloso, aquela filosofia rasa. Aquela ânsia por um mundo maior que colégio, as meninas distantes do colégio, pai, mãe e até onde a bicicleta podia me levar.

Lendo agora, vinte e tantos anos depois, reencontrei várias frases que eu nem lembrava que eram da Moonshadow. Cenas que eu não sabia que eram de lá. Quis voltar àqueles tempos. Quis viver de novo dentro daquele breguice.

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Como é traduzir uma obra querida? No geral, é igual a traduzir as outras. O que muda são alguns detalhes, emocionais, no começo e no fim do processo.

A primeira etapa de traduzir é ler. Ler-para-traduzir é diferente do ler-por-lazer e é próximo do ler-para-criticar. Você lê analisando, entre outras coisas, a escolha das palavras.

“Those words, minted in 1789” são as primeiras palavras originais em Moonshadow: por que “minted”, e não “written”? Ou “coined”? Ou “conceived”? Mas como sua função não é só analisar, e sim transformar, logo se parte à pragmática de dizer aquilo em outro idioma: “Estas palavras, cunhadas… engendradas?… urdidas?… em 1789…” E segue assim, de frase em frase, palavra por palavra. É mais fácil do que parece, depois de um tempo.

Ler-para-traduzir implica em pensar como o autor ou autora, ou tentar pensar como o autor ou autora escolheu uma palavrinha para colocar depois da outra. Você enxerga - ou faz um esforço tremendo para concluir que enxergou - o processo mental de quem armou aquele original.

O ler-para-traduzir pode fazer você achar que a obra podia ter tomado outros caminhos, opções melhores. Que falta algo. Se era uma obra que você já conhecia e respeitava, pode ser que ela se desmanche e vire caquinhos.

O contrário também é válido. Aquela HQ que você já leu e não deu bola, quando lida-para-traduzir, se mostra bem pensada, elaborada, com as palavras melhor pesadas do que você havia sentido no ler-por-lazer, ou mesmo no ler-para-criticar. Já traduzi HQs que se desmancharam no meu conceito. Já traduzi HQs que se solidificaram.

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Quando sou incumbido de traduzir alguma obra com a qual tenho uma relação próxima, quem sabe até nostálgica, e positiva, a primeira reação é de euforia. E um pouquinho de medo. Vai ser bom voltar, vai ser bom reler, vai ser uma responsabilidade. Também pode ser que a obra se estrague pra sempre no meu afeto. A euforia com medo corresponde a mais ou menos a primeira hora de trabalho.

Nas vinte e três horas, ou nas duzentas e quarenta, ou nos três meses de trabalho seguintes, de bunda sentada na cadeira traduzindo, a emoção é tal qual a de traduzir um manual de micro-ondas. É trabalho. É o mesmo processo de qualquer tradução.

Nos minutos finais, naquele final da revisão da revisão, quando eu estou decidindo se vale aproveitar o prazo e dar mais uma lambida no texto, pode bater uma apreensão: “Isso é tão importante pra outros quanto é pra mim. Será que eu dei a atenção que devia? Será que vão entender como eu li e vão ler como eu gostaria que lessem? Com tudo que tem de brega e de triunfal e de bonito?”

(Insira aí também o fato de casos como Moonshadow serem de retradução e, possivelmente, de comparação da minha tradução com a anterior.)

Foi assim quando eu traduzi Tintim. Quando eu traduzi Livros da Magia e outros quadrinhos muito queridos do Neil Gaiman. Ghost World, e tudo que ela me disse numa época, que eu sei que também dizia para muita gente, e que eu tinha responsabilidade de fazer com que ela continuasse dizendo. Flex Mentallo e Patrulha do Destino. Alguns Alan Moores. Aquela edição de aniversário de Hellblazer, “Procura-se Algo Desesperadamente”. Quando eu traduzi Scott Pilgrim e Rosalie Lightning, com as quais eu tinha uma relação de pouquíssimo tempo para chamar de nostálgica, mas que já era uma relação forte.

Todas estas traduções foram trabalho, e tratadas, na maior parte do processo, com a mesma atenção que os autores de que eu não gosto. A mesma atenção. A diferença são uns calafrios, no início e no fim da tradução.

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Moonshadow não se desmanchou em caquinhos enquanto eu traduzia. É óbvio que não sou a mesma pessoa que leu a HQ há vinte e tantos anos, nem a que releu nas outras duas ou três vezes. Naquela época ela foi o mundo, hoje ela é uma época.

O mais assustador na releitura, a para-traduzir, foi descobrir ali coisas de mim, do eu de hoje, que tinha esquecido que vinham de Moonshadow. Não só que aprendi a ser um homem branco reclamando das mesmas lacunas na vida e com as mesmas ânsias daquele personagem brega. Tenho um pouquinho do Ira, o parceiro peludo que às vezes tem que botar o deslumbrado Moonshadow nos eixos.

Alguns caquinhos caíram da HQ, mas são irrisórios. Um “hoping” que devia ser “hopping”, uma “law party” que devia ser “lawn party”, “love depened” que devia ser “love deepened”. Tive a oportunidade de trocar e-mails com J.M. DeMatteis, contei dos typos e ele me agradeceu: “Você achou gralhas que devem estar lá desde o começo e ninguém tinha notado!”

Não, sr. DeMatteis. Só achei essas coisas porque eu li-para-traduzir. E veja que ler-para-traduzir só melhorou minha relação com Moonshadow. Quem agradece sou eu.

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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