Centenas de tons de drama familiar

21/06/2017

Por Débora Landsberg

Fui morar quatro meses na Irlanda com uma bolsa de estadia concedida pela Literature Ireland e o Trinity College Dublin. Minhas obrigações eram dar aulas aos mestrandos em Tradução Literária da universidade e traduzir o livro de uma autora irlandesa. Como a autora da qual fui incumbida é estreante e o título escolhido ainda não tinha sido lançado por lá, ninguém a conhecia, e eu não podia contar detalhes da obra (ele deve sair aqui no segundo semestre, pela Alfaguara). Portanto, a pergunta que sempre vinha em seguida era “que outros escritores você traduziu?”.

Descobri logo que os irlandeses interessados em literatura se orgulham de ter uma escritora chamada Anne Enright. Não foi à toa sua escolha pelo Arts Council da Irlanda como a grande figura pública da ficção nacional. No entanto, a autora diz que o processo de conquista dos conterrâneos não é fácil: “Os escritores nunca narram histórias maravilhosas sobre a Irlanda, eles narram histórias interessantes sobre a Irlanda, e a Irlanda não necessariamente valoriza isso”.

Em uma reunião informal com membros do Departamento de Letras do Trinity, um professor me contou que Enright já tinha um estilo muito próprio quando estava na graduação. Em A estrada verde, seu terceiro romance publicado no Brasil, ela nos atira no meio das cenas sem nos dizer exatamente o que está acontecendo. Além disso, é mestra na arte dos diálogos que dizem muito sem dizer nada (e isso também é natural para os irlandeses, de acordo com eles mesmos). Foi um ótimo desafio recriar essas complexidades em português.

Segundo a primeira frase de Tolstói em Anna Kariênina, em tradução de Rubens Figueiredo, “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A estrada verde é um mergulho na infelicidade (e na treta) familiar. No romance, Rosaleen é a típica matriarca irlandesa (meus amigos irlandeses que leram o romance confirmaram!) que sofre com as decisões tomadas pelos quatro filhos. Logo no início, em um capítulo que se passa nos anos 1980, um deles anuncia o desejo de se tornar padre. Rosaleen se debulha em lágrimas e passa dias sem sair do quarto. Anos depois, reencontramos Dan, o filho que quase virou padre, em outro contexto, vivendo sob a ameaça da aids na Nova York do começo da década de 1990. Constance, a irmã mais velha, é a que leva a vida mais convencional: é casada e tem dois filhos, mas enfrenta sozinha uma consulta médica que a amedronta. Emmet mora na África e lida com o amor; Hannah lida com a maternidade e com a frustração profissional; Rosaleen, a mãe, lida com o esquecimento. Na segunda parte, os filhos se encaminham para a casa onde cresceram, a ser vendida pela mãe, para um último Natal.

A respeito do título, Anne Enright esclarece após os agradecimentos que “a estrada verde […] é uma rodovia que existe de verdade e atravessa a região de Burren no Condado de Clare”. Burren é um lugar turístico, mas nem tanto. Muitas excursões que vão para os imperdíveis Cliffs of Moher não param lá. Recomendo enfaticamente que, ao programar um passeio pelos Cliffs, o leitor procure uma excursão que visite o local. E que preste muita, muita atenção nas centenas de tons de verde das belíssimas estradas que nos levam até lá, com casinhas parecidas com a da capa. 

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Débora Landsberg nasceu no Rio de Janeiro em 1982. É mestra em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. Em sua dissertação, investigou como tornar diálogos traduzidos mais verossímeis. De janeiro a maio de 2017, foi tradutora residente da Literature Ireland, ministrando um seminário para alunos de mestrado do Trinity College Dublin. Tradutora literária desde 2005, já traduziu obras de autores como Charles Dickens, Margaret Atwood, Joyce Carol Oates e Shirley Jackson, e em maio a Alfaguara publicou sua tradução de A estrada verde, de Anne Enright. 

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