Cinco grandes diretores vão à guerra – e descobrem a si mesmos

23/11/2017

Divulgação Netflix.

Chega essa época do ano e sou bombardeada por filmes. Dezenas de filmes. Dúzias de filmes. Somando os em inglês e os produzidos nos quatro cantos do mundo, centenas de filmes. E nem conto as séries de televisão e streaming, que essas eu consigo acompanhar ao longo do ano. Os filmes, especialmente os que se fazem pelo mundo afora, acabam se tornando uma espécie de maratona artística-linguística.

Para me preparar para essa olimpíada do cinema, criei uma espécie de ritual particular – antes de começar a maratona, escolho algo que só quero ver porque quero ver, e que não tem absolutamente nada a ver com o dilúvio fílmico que se segue. Ano passado revi O mensageiro do diabo por vários motivos, inclusive pelo fato de ser o primeiro e único filme de seu diretor, Charles Laughton. Este ano, graças à Netflix, descobri um documentário que já devia ter visto há mais tempo: Five Came Back, de Laurent Bouzereau, um francês radicado nos EUA que se especializou em fazer making-ofs, mas que, aqui, se revela um documentarista de primeira - baseado no livro Cinco voltaramde Mark Harris.

A história dos cinco diretores – e não quaisquer diretores, cinco dos maiores nomes de Hollwyood na época – que se alistaram para servir na Segunda Guerra Mundial, e se tornaram alguns dos mais importantes criadores e guardiões da narrativa audiovisual do conflito, é fascinante de muitos modos. Mas, como alguém que escreve, como eu, seu poder é ainda mais profundo, porque responde, de muitos modos diferentes, a velha pergunta: quem é o dono da narrativa? Quem tem mais poder: o narrador sobre a narrativa, ou a narrativa sobre o narrador?

Quando Frank Capra, George Stevens, John Ford, John Huston e William Wyler decidiram participar ativamente do esforço de guerra, eram todos nomes conhecidíssimos da indústria, no topo da lista dos estúdios para os quais trabalhavam. As notícias que chegavam da Europa e, em dezembro de 1941, o ataque japonês a Pearl Harbor levaram os cinco a se envolverem diretamente no conflito. Dois eram imigrantes: o italiano Frank Capra, um dos primeiros a se alistar, e o judeu alemão William Wyler. Capra imediatamente ofereceu seus serviços ao Departamento de Estado, propondo uma série de curtas documentando as ofensivas das tropas aliadas, especialmente as norte-americanas, e envolvendo seus colegas Ford e Huston. Wyler queria, acima de tudo, saber o que estava acontecendo com a família que tinha deixado na cidadezinha onde nascera, na Alsácia, então território alemão. Asmático e ocupado com dois projetos em finalização, George Stevens foi o último a se alistar, e foi imediatamente despachado para o norte da África - por onde os dois Johns já tinham passado, com resultados diferentes – e de lá para Londres, onde participaria diretamente de um dos grandes momentos da história do século XX, o desembarque dos aliados nas praias da Normandia.

Onde eles vão e o que fazem é um dos prazeres de Five Came Back. Mas, sobretudo, é uma aventura ver como cinco homens em plena forma e controle de seu talento, que achavam que sabiam tanto, rapidamente descobrem que não estão mais no controle de suas narrativas. Que, ao contrário dos sets nos backlots dos grandes estúdios, eles não tinham mais voz alguma em como e quando as coisas aconteciam. E que uma câmera não era capaz de defendê-los de balas, granadas e tanques.

Como eles resolvem essa crise existencial é uma aula para todo mundo que cria. Como eles, mestres da ficção, tentam recriar e ficcionalizar o que não podiam controlar. Como aos poucos sucumbem ao inevitável, ao mesmo tempo fascinados e horrorizados por ver, tão perto, a violência, a brutalidade e a dor que tão alegremente haviam orquestrado em suas filmagens em Hollywood.

Wyler perde a audição em um dos ouvidos durante uma batalha aérea. Huston não para de filmar, com carinho e até devoção, os corpos dos soldados mortos em combate e os rostos dos sobreviventes – seu último documentário será sobre os distúrbios emocionais causados pela experiência da guerra. Ford se dedica a fazer curtas educativos para as tropas. Capra e Stevens, com pequenas câmeras 16 mm, uma com filme preto e branco e outra a cores, desembarcam na Normandia e caminham entre saraivadas como se seu amor pelo cinema pudesse funcionar como um manto de invisibilidade.

Stevens continuará a jornada até a Alemanha, e será um dos primeiros a ver e documentar os campos de extermínio. Há um momento em Five Came Back que resume quase tudo que o documentário é: Stevens, um homem alto, grande, de farda completa, corpo e rosto transpirando exaustão, uma câmera pendente de uma das mãos, olhando ao redor, num vilarejo semidestruído, como quem se rende, absolutamente, à história da qual ele não é mais dono – mas cujo testemunho pode mudar tudo (Stevens doou ao Tribunal de Nuremberg o material bruto de suas filmagens na jornada Alemanha adentro, pelos campos de concentração, como prova de crimes contra a humanidade).

A experiência da guerra mudou para sempre os cinco que retornaram. Uma boa parte de suas maiores obras foi realizada imediatamente depois da guerra, cada uma delas uma resposta pessoal à prova de fogo que os mudou e purificou. Ford faz Fomos os sacrificados, semi-ficcionalização de um episódio real do front do Pacífico, e Rastros de ódio; Huston, O segredo de Sierra Madre, ácido, amargo, descrente da humanidade; Stevens, até então famoso por suas comédias, se dedica prioritariamente a dramas – Um lugar ao sol, Assim caminha a humanidade e O diário de Anne Frank ; Wyler responde à guerra com Os melhores anos de nossas vidas, sobre como voltar ao “normal” quando o normal é impossível; e Capra, talvez o que mais tem dificuldade em retomar seu trabalho, usa tudo o que viu e viveu para criar o filme que oferece uma resposta possível, e que pelo qual será eternamente lembrado: A felicidade não se compra.

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Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do Brasil e Folha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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