Como começar a escrever um texto

23/04/2018

FOTO: Unsplash            

Eu ia começar a escrever um texto, mas nem tomei café da manhã direito, e preciso ao menos de um chá preto pela cafeína.

Eu ia começar a escrever um texto, mas não tenho como escrever com a louça por lavar desse jeito.

Eu ia começar a escrever um texto, mas está na hora de alimentar minha gata por sonda. Ela está bastante doente com leucemia felina e anemia. No momento, isso requer medicação e comida via sonda a cada três horas, até estabilização.

Eu ia começar a escrever um texto, mas fico um pouco triste depois de dar sonda para a gata. Confiro as redes sociais. Fico mais triste.

Eu ia começar a escrever um texto, mas estou triste.

Eu ia começar a escrever um texto quando me perguntei se já não deveria ter mandado uma crônica para o blog da Companhia das Letras. Quando é que eu tinha que entregar mesmo? E para quem? A menina antiga da comunicação saiu, e é com ela que eu falava. Fiz uma nota mental de descobrir quem seria a pessoa nova e mandar um e-mail. De preferência, hoje ainda.

Eu ia começar a escrever um texto quando confiro minha agenda em papel. Noto que está desatualizada. Começo a conferir todos os chats do WhatsApp para confirmar datas e anotá-las ali.

 Eu ia começar a escrever um texto, mas a ideia que eu tinha de como começar esse texto é uma que acho que já tive, e fico um tempo me perguntando o valor estético de ideias recicladas ou autoplágio.

Eu ia começar a escrever um texto, mas fiquei um instante pensando em como a Ize, a antiga menina da comunicação, era uma pessoa legal. Torci para que a pessoa nova também fosse.

Eu ia começar a escrever um texto, mas suspirei.

Eu ia começar a escrever um texto, mas tinha esquecido de colocar o celular no modo avião, como costumo. Aí coloquei. Antes, conferi minhas redes sociais. Postei uma foto da gata no Instagram.

Eu ia começar a escrever um texto, mas meu celular começou a tocar, e eu tenho fobia social de falar no telefone. Resolvi olhar quem era, e era a organização de uma feira do livro. Alguma coisa sobre minha participação. Atendi na segunda chamada. Estavam me cobrando a minha biografia e as fotos em alta resolução, que eu ainda não havia enviado. No entanto, ninguém me pediu essa informação. Precisavam disso urgente. Haviam me convidado na segunda, mas precisavam disso para quarta. Isso e os documentos autenticados em cartório que haviam esquecido de anexar. O prazo apertado, sabe como é. Eu pedi desculpas. Eu provavelmente não vi o e-mail. Fui enviar os arquivos.

Eu ia começar a escrever um texto, mas eu tinha pilates mais tarde hoje. Fiz uma nota mental de me depilar antes de ir para a aula, para poder usar aquela calça mais curta de que gosto.

Eu ia começar a escrever um texto, mas recebi um e-mail cobrando o post do blog da Companhia das Letras. É uma pessoa nova. Eu me desculpei. Prometi para o mesmo dia.

Eu ia começar a escrever um texto quando, por estar no meu e-mail, vejo que alguém me enviou algo. Alguém me pediu uma entrevista, algo sobre mulheres na literatura. Precisavam das respostas até amanhã. O prazo apertado, sabe como é.

Eu ia começar a escrever um texto, quando acabei fazendo um tratado sobre a participação de mulheres no meio literário. Eu pedi desculpas, disse que podiam cortar, mas preferia que eles tivessem que cortar informação do que ficar com menos. Cliquei em enviar.

Eu ia começar a escrever um texto, mas fiquei com fome.

Eu ia começar a escrever um texto, mas eu literalmente tive que parar de escrever este texto que estou escrevendo agora neste momento, no meio da frase “Eu ia começar”, porque a gata vomitou.

Eu ia começar a escrever um texto, mas o celular me mostrou que eu tinha recebido uma mensagem no Instagram. Ué, eu não tinha colocado no modo avião? Era uma resposta que entrou antes do modo avião. Alguém comentando algo sobre a foto da gata. Um jovem escritor. Disse que era legal como eu postava coisas do dia a dia, meus prazos, meus apertos, minhas bagunças, não postava uma versão da escrita idealizada e cheia de glamour. Agradeci, disse que escrever era a coisa menos glamorosa que eu fazia no dia. O jovem escritor disse que, “aproveitando o ensejo”, ele queria saber como eu conseguia tempo numa rotina tão maluca para conseguir escrever. Eu disse que quando descobrisse, eu venderia a resposta.

Eu ia começar a escrever um texto, mas recebo um e-mail de uma tradução que eu achava que deveria ser entregue na terceira semana do mês. Acontece que a terceira semana do mês era em torno do dia 15 e eu calculei tudo errado, pensando que seria dia 21. Pedi desculpas efusivas. Disse que mandaria hoje mesmo.

Eu ia começar a escrever um texto, quando fiquei rindo da ideia de eu, que nem completei 27 anos, achava que outra pessoa podia ser um jovem escritor.

Eu ia começar a escrever um texto, quando o jovem escritor disse que mesmo com as bagunças da vida e do meio literário, também era surpreendente eu ser escritora e ser linda. Escritoras em geral são feias. Ele mesmo tem essa teoria de que mulheres não podem ser bonitas demais para serem boas escritoras. Franzi a testa.

            Eu ia começar a escrever um texto, mas pensei que talvez a coisa menos glamorosa que eu fizesse no dia fosse limpar vômito de gato. Mas escrever pode ser um segundo lugar próximo. Apertado.

Eu ia começar a escrever um texto.

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Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou "Contos de mentira" (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), "Quiçá" (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, "Luzes de emergência se acenderão automaticamente", foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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