Dane-se o texto

31/01/2020

POR MATEUS BALDI*

 

 

Jim Sams é uma barata, e certa manhã acorda metamorfoseado no primeiro-ministro britânico às vésperas de um pleito que pode mudar os rumos da nação. É com esse mote, desde o início uma alegoria escrachada, que A barata, o novo livro de Ian McEwan, analisa a Europa que chega à nova década mergulhada em arroubos cafonas de fascismo.

Propondo uma nova dinâmica econômica, o reversalismo – em que a população pagaria para trabalhar e ganharia para consumir –, McEwan molda seu pastiche do Brexit para demonstrar, pelos olhos dos reversalistas, o absurdo da situação – não que eles percebam. E ao encharcar seus personagens de bestialidade, dando-lhes características de insetos e práticas nojentas, A barata carrega sobretudo o signo da despretensão. Fica claro que McEwan não está interessado em fazer uma narrativa de fôlego sobre o sistema político, e sim um breve comentário para deixar claro às gerações futuras que, em tempos de “nazismo é de esquerda”, ele esteve contra a aberração do Brexit. É interessante notar como há também um jogo de espelhos bastante sutil, com o escritor britânico manipulando o foco a todo momento para que o leitor se veja minimamente tentado a entender o reversalismo. A graça da leitura, portanto, está no reiterado absurdo da situação: não é só a crítica ao Brexit e a lógica homenagem a Kafka e seu A metamorfose; nas 100 páginas da novela, McEwan parece interessado em explicitar uma política do escritor como cidadão.

A Barata deixa claro que os escritores, diante de tragédias anunciadas ou não, têm o dever de comentar e demarcar uma posição. Se o movimento nacionalista da vida real tem alardeadas consequências catastróficas, o reversalismo surge como solução definitiva e algo milagrosa para a crise do capitalismo. Revelando-se um político hábil, Jim Sams acredita que veio “para salvar a todos” e consegue se virar bem no tabuleiro das instituições. Diversas vezes confuso com seu papel, ele nunca hesita em ter pulso firme para se comportar como um verdadeiro humano – a disputa com a França talvez seja o melhor exemplo: agindo como um déspota demagogo após um incidente com um barco de pesca, Sams recorre ao Twitter, que avalia como “uma versão primitiva do inconsciente feromonal”. A troca de farpas políticas que se segue, embora inicialmente óbvia, nada tem de gratuita: é a realidade pura e simples nas páginas de uma fábula.

No posfácio, ao explicar a gênese do livro e o que pensa de Boris Johnson, Trump e companhia, McEwan declara ter se inspirado em Uma modesta proposta, de Jonathan Swift, mas não seria exagero tecer paralelos com Albert Camus e seus escritos fervorosos em defesa de uma Europa menos colonialista. Na conferência O tempo dos assassinos, o filósofo deteve-se na Segunda Guerra como limite para o desenvolvimento de um futuro possível no Velho Continente, explorando a “soberba” e a necessidade dos europeus de “reaprender a modéstia”.

Em 2020, fica particularmente interessante reler Camus e esta conferência à luz do neofascismo: no momento em que a Europa se vê enredada pela extrema-direita, com ânimos nacionalistas exacerbados, é inevitável perceber que todos os conselhos do pós-guerra foram por água abaixo, exatamente como McEwan parece nos dizer – mesmo com toda a destruição que o sistema político proporcionou, nenhuma chegaria aos pés da catástrofe que seria o Brexit. Também de nada serve a existência de livros como Pastoral americana, As benevolentes e tantos outros que expuseram os horrores das guerras aos civis de todos os continentes: como a luta pela democracia nunca está ganha, precisamos reafirmar o compromisso com ela a fim de extirpar o fascismo de vez – o que também nunca é uma luta ganha, e assim por diante

Como um moto-contínuo, A barata de McEwan é uma reafirmação de princípios, uma renovação de contrato. Pouco importa que não seja seu melhor trabalho ou não carregue o estilo de Na praia, trabalho igualmente sucinto e direto sobre os efeitos do tempo – o que está em jogo, contrariando as expectativas, é o lado de fora do texto, uma escapadela das regras da literatura: num mundo governado por baratas, dane-se o texto e suas obrigações estéticas agora, antes que nos danemos para sempre.

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Mateus Baldi é escritor e crítico literário. Em 2016, fundou a Resenha de Bolso, plataforma de crítica voltada para a literatura contemporânea.

 

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