Por Italo Moriconi
p>Arranjos para assobio, de 1982, é o livro de Manoel de Barros escolhido pelo selo Alfaguara para abrir a reedição de sua obras completas, junto com o volume que reúne seus dois primeiros títulos editados -- Poemas concebidos sem pecado e Face imóvel, originalmente lançados em 1937 e 1942. Neste ano do centenário de Manoel, o projeto da coleção é ir lançando todos os livros, sem observância estrita da sequência cronológica em que originalmente apareceram. Ao final do percurso, o leitor poderá ter em sua estante, aí sim, a trajetória inteira deste excepcional conjunto de obra, cronologicamente organizado na sequência em que cada livro apareceu.
E por que Arranjos para assobio? Por que 1982?
É que esse livro e esse ano representaram uma espécie de novo começo na carreira do poeta. Depois do silêncio de dez anos, em que precisara dedicar-se à própria sobrevivência e de sua família, Manoel voltava à cena literária com textos que reafirmavam e acentuavam a originalidade de seu movimento criador. Nele aparecia a palavra “inutensílio”, uma das matrizes de seu especialíssimo vocabulário, a especialíssima rede de imagens-conceitos que constituem seu universo imaginário. A partir desse recomeço, a presença da obra de Manoel se fez cada vez mais insistente, de tal modo que a crítica literária contemporânea tende a vê-lo mais como parte do cenário dos anos 1980/90 que de momentos anteriores.
Na verdade, a linguagem poética especialíssima de Manoel enraiza-se no que pode haver de mais representativo das vanguardas dos anos 1950 e 1960. Como inventor de linguagem, seus livros dos anos 1960 (Compêndio para uso dos pássaros, Gramática expositiva do chão e Matéria de poesia) encontram parentescos de afinidade, contraste ou desafio implícito às poéticas suas contemporâneas de João Cabral, Guimarães Rosa, Haroldo de Campos leitor de Iauaretê, entre outros autores que ainda estão por ser identificados e explorados pelos estudiosos de letras. Mencione-se, por exemplo, Millôr Fernandes, pelo humor aforismático e inusitado da imaginação, com larga presença de passarinhos. Millôr foi um grande divulgador da poesia de Manoel de Barros, contribuindo para que esta saísse do gueto dos “happy few” (os pretensamente “poucos e bons”) e conquistasse a popularidade de que desfruta até hoje e que, com a reedição e as celebrações do centenário, só fará crescer.
Ao ser reapresentado ao público leitor dos anos 1980, o projeto poético da escrita de Manoel, já dotado de extrema coerência desde fins da década de 1950, revelou-se perfeitamente ajustado às necessidades das novas gerações, através da mescla entre poema curto e andamento narrativo, da presença do tom conversacional, sobretudo pela ética poética do traste, da gosma, do entulho, do riacho, daquilo que por sua própria natureza escapa e critica, pela imagem, os rituais e tramas discursivas do poder. A alma construtora e arrogante do poder.
A poesia de Manoel de Barros é desconstrução o tempo todo. Há nela uma sobranceria da não arrogância. O poeta calça as sandálias da humildade de Francisco de Assis, que surge como ícone, como se lê no poema “Cisco”: “Pessoa esbarrada em raiz de parede / Qualquer indivíduo adequado a lata / Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de / O CISCO DE DEUS a São Francisco de Assis / Diz-se também de homem numa sarjeta.” O poeta é, pois, o ser que cisca nos dicionários e nas sarjetas. Já a poesia, na mesma página, é definida como “produto de uma pessoa inclinada a antro”, “espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem”. Religando-se aos preceitos arcônticos dos mestres modernistas que o antecederam e de certa forma o possibilitaram (refiro-me aqui a Manoel Bandeira e Oswald de Andrade), Manoel afirma ainda que a poesia é “armação de objetos lúdicos (...) geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados”.
Assim, em seus textos, Manoel busca projetar por imagens e palavras o ver da criança, em ato. Mas há também a sonoridade, a contiguidade musical de toda poesia. Há o assobio. No universo de Manoel, o assobio é a música produzida intuitivamente pelo menino que percorre as fímbrias do seu mundo, explorando os quintais da Casa. O menino vai ao encontro do bugre, do caboclo de sua região pantaneira. Na fronteira: diálogo, escuta. Em toda a sua obra, Manoel de Barros explora sistematicamente esta matéria-prima: a combinação entre o olhar da criança, a linguagem louca do “bugre” e a erudição que vem como bagagem e referência. A palavra poética é a hora do recreio da erudição, hora da incursão curiosa pelas vísceras do terreno.
Com tudo isso, por tudo isso, penetrar na poesia de Manoel de Barros é adentrar todo um universo intricado, ao mesmo tempo muito nítido, de sensações entrelaçadas: talvez tenhamos nessa obra a realização mais radical da sinestesia poética em toda a poesia brasileira, pari passu com Jorge de Lima. Na precisa expressão de Luiz Ruffato, que prefacia o volume agora lançado pela Alfaguara, a poesia de Manoel é constituída de frases “que se sucedem formando riachos, mais tarde rios”. Navegar por essas águas é uma experiência de leitura de que ninguém sai ileso.
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Italo Moriconi é o organizador dos consagrados Os cem melhores contos brasileiros do século e Os cem melhores poemas brasileiros do século, ambos editados pela Objetiva. É doutor em Letras e professor de literatura brasileira e comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.