Desplazamiento

24/05/2019

Foto: Luisa Geisler

 

Como qualquer pessoa que interagiu minimamente comigo nas ultimas semanas sabe, estou na Argentina. Não só na Argentina, mas numa residência literária em Buenos Aires.

Antes de seguir, preciso definir o que é uma residência literária. Uma organização, convencida de que há potencial e valor social, dá a um escritor um estipêndio, casa, comida, roupa lavada. Algumas pagam inclusive a locomoção e passagem de avião. Outras só cedem um espaço e você se vira com o resto. Algumas residências são mais pro lado de “pagas”, no sentido de você pagar para frequentar, enquanto outras são mais pro lado de “te pagam”, no sentido do estipêndio e aluguel. Quanto mais pro eixo do “te pagam” elas forem, mais concorridas são. A maioria delas vem de organizações internacionais. Houve uma do Sesc algum tempo atrás, mas acho que está em hiato. Vocês tirem suas conclusões de por que não há residências literárias no Brasil (onde não há nem educação superior direito).

No meu caso, a minha residência foi cedida e organizada pelo Malba, o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires. Infelizmente, eu não fico no museu, dentro dele. Mas sou o que chamam de escritora residente, tenho uma credencial e vou a tudo que é coisa. Minha coisa favorita é um curso da cidade de Buenos Aires como cenário estético e ideológico na literatura argentina.

(Antes de seguir, vou deixar este parágrafo reconhecendo que é sempre um privilégio e honra participar de residências literárias. Não é todo mundo que pode largar tudo por cinco semanas. Não é todo mundo que tem condições de parar tudo e fazer uma candidatura. A candidatura, por si só, é em geral em idioma estrangeiro. Não é todo mundo que tem condições de fazer a candidatura, que inclui textos (que devem estar traduzidos). Dito isso, sei que é uma discussão privilegiada e em geral pensada por autores que já foram publicados. Nunca vi uma residência focada em autores não-publicados. Seria interessante. Mas nunca vi. Esse foi meu mea culpa. Obrigada.)

Fiz uma residência literária em 2012, na Omi Ledig House, em Nova York. Desta, resultou De espaços abandonados, livro que saiu em 2018. Mas os primeiros passos, as primeiras estruturas e, é claro, os personagens, surgiram dali, olhando por uma janela em Ghent, tentando fotografar cervos no jardim. A arte é esse processo subjetivo, lento, doloroso e lindo. Por isso, as residências existem — para abraçar isso.

O que diferencia uma residência do que se trocar em um hotel e escrever? Claro, além do aspecto financeiro (no meu caso). Um grande lance é o contexto cultural em que a residência coloca o artista. Há a questão do idioma. E, claro, o deslocamento. A maioria das residências não é no local onde o artista vive, e não sei se muitos as buscariam assim.

A mudança de idioma para mim sempre resulta em coisas interessantes. Estudei francês, italiano, alemão e em algum momento aprendi espanhol. Não falo muito bem nem português, mas estudei. E estar em contato com idiomas sempre me lembra a plasticidade do meu próprio idioma. Falar em “Schadenfreude”, a ideia da “alegria pelo dano alheio”, me faz pensar em português. Isso me faz pensar se português teria um equivalente.

Para idiomas latinos, é claro, tem a questão das palavras que existem mas não são usadas. “Quiçá” vem do latim, qui sapit, quem sabe, quer dizer algo como talvez. Em português não se usa muito. Em espanhol — além de separarem o “tal vez”, que acho que dá uma carga poética à palavra —, se usa muito mais o “quizá”. Tem aquela canção “Quizás, quizás, quizás”. Mas “quiçá” é minha palavra favorita do português. Tenho um livro em homenagem a ela. Ela é simétrica. Ela tem o cedilha, o acento. Ela parece abarcar tanto. Outras palavras que gostaria que ganhassem maior uso pelo amor de deus: lograr, oxalá, gauchada (no sentido de gambiarra, muito usado na Argentina). Isso, é claro, me aconteceu em vários idiomas, mas achei citar exemplos de palavras que já existem mais apropriado.

É tudo uma aposta. Eu tenho uma ideia, sobre a qual não quero falar muito pra não dar errado. Em inglês, “jinx it”. Amaldiçoar. Mas tem a ver com isso, com América Latina, com idiomas, com espanhol, com quizás, quizás, quizás.

Se pode traduzir “desplazamiento” como “deslocamento”. Mas acho que quando falamos em “desplazamiento”, já há um desconforto inerente em tentar localizar a palavra. Porque quem fala português, consegue entender a palavra. Uma coceira do cérebro de que isso faz sentido em algum momento, mas não ter a conexão neurológica. E é isso que acho que estou fazendo. Me desconfortando um pouco. Para ver tudo um pouco mais de longe, inclusive meu idioma. Para ver tudo um pouco mais de longe, inclusive a literatura. Para dar um passo para trás e ver se formo uma imagem, inclusive de mim mesma.

***

Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura). Seu último livro, De espaços abandonados foi publicado pela Alfaguara em 2018. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

 

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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