Dez Anos

16/05/2020

 

Lembro que eu estava lá no Salão de Beleza, o estúdio de quadrinistas na Pompeia, e o Rafael Coutinho me perguntou se aquela visita ia virar uma matéria. Não rolou exatamente uma entrevista e eu não lembro nem de tirar foto. Era uma visita – que “vai virar alguma coisa, ainda não sei o quê”, eu respondi.

O outro Rafael do Salão, o Grampá, me disse que queria contar histórias e não ia ficar só nos quadrinhos. O terceiro Rafael não era um Rafael, era o Fabio Cobiaco – que não me deu papo, então escrevi que ele ficou “na sua; compenetrado na prancheta”. (Encontrei o Cobiaco num FIQ, muito tempo depois, e ele me agradeceu por ter “captado meu jeito”.)

“Alguma coisa, ainda não sei o quê” virou minha primeira coluna para o Blog da Companhia: “Salão de Beleza”. Hoje ela completa dez anos.

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Eu tinha completado 30, era professor universitário no oeste de Santa Catarina e acabava de publicar minhas primeiras traduções pela Companhia das Letras. Escrevia sobre quadrinhos desde os 16 e, naquela época, escrevia diariamente sobre HQ pro Omelete. No ano anterior, eu e um amigo havíamos montado um hotsite para o lançamento da Quadrinhos na Cia. Apresentei um projeto para dar continuidade ao hotsite, que se misturou a um projeto mais antigo de Blog da Companhia. Depois de mais de um ano de tratativas, virei colunista do Blog. Minha primeira coluna foi a primeira postagem.

Botei na cabeça que era um espaço para escrever sobre quadrinho a quem não lia quadrinho. Aquele sonho de evangelizador eisner-mccloudiano, levando a palavra da HQ à cada porta. Era o público da Companhia das Letras, então eu precisava vestir no mínimo um blazer. Ser “literário”, seja lá o que isso quer dizer. Os outros colunistas: Luiz Schwarcz, Vanessa Barbara, Tony Bellotto, Joca Reiners Terron. O moleque precisava muito de um paletó.

Estou com 40, voltei a morar na minha cidade natal na pontinha sul do Brasil, tenho um filho e uma filha, larguei a docência, fiz doutorado em tradução e passo a maior parte do dia traduzindo. A coluna foi quinzenal durante anos, depois virou mensal. Dos colunistas iniciais, sou o único que segue por aqui.

Não sei se evangelizei alguém nem se escrevo a uma paróquia de fiéis. Não sei quem é você, mas sigo escrevendo. Todo mundo vê que tem uma camiseta do Homem-Aranha por baixo do blazer. Às vezes até tiro o blazer.

* * *

Meu texto preferido é o que chamei de “??”. É basicamente um listão de idades dos quadrinistas, ou a idade que tinham em pontos importantes da vida. “Mark Millar e Rafael Campos Rocha têm 45, que Christophe Blain completa daqui a alguns dias. Chris Ware, Blutch, Warren Ellis, Frank Quitely, Jamie Hewlett e Brian Bendis têm 47. Odyr e James Kochalka têm 48.” Daria para atualizar esses trechos somando cinco anos a cada um. Menos, infelizmente, a Shigeru Mizuki, Mort Walker, Kazuo Koike, Jiro Taniguchi e Stan Lee. Escrevi  “??” dez dias depois da morte da minha mãe. Alguns amigos notaram.

Minha filha virou tema de uma coluna cinco dias depois de nascer porque, como no caso anterior, eu não conseguia pensar em outra coisa. Ela também virou tema de outros textos. Meu filho ainda não apareceu por aqui e espero que ele não leve isso à terapeuta; ele tem dezessete meses. Torço que os dois tenham alguma coisa do moleque do Alaska que fez uma pesquisa para justificar gibi como leitura escolar – outro dos meus textos preferidos. Aliás, com que idade deve estar aquele moleque?

Puxei a campanha pela categoria Quadrinhos no Prêmio Jabuti, que rendeu frutos seis anos depois, quando outros encamparam. Cacei histórias de leitores de HQ – tipo “O condomínio que leu Retalhos – e acho que devia retomar essa pauta. Teve aquela feita de ultimíssima hora (como em 80% dos casos) sobre o Dia do Quadrinho Nacional, quando uns setenta autores nacionais me contaram no que iam trabalhar durante o dia.

Tem as que eu não gosto também, mas é melhor não contar quais são. Contando com o de hoje, foram 166 textos.

* * *

Em 2010, o mercado de quadrinhos estava numa ascendente que ainda ia durar. Era um bom momento econômico e cultural no país e os quadrinhos – fossem nacionais, fossem importados – entraram na onda de um jeito que não havia acontecido em outros momentos de grana, estímulo e vontade. Pipocavam editoras e selos como o da própria Companhia, o espaço de HQ nas livrarias crescia, o governo federal fazia compras milionárias de HQ, festivais como o FIQ de Belo Horizonte batiam recorde de público e de envolvimento dos independentes. Crowdfunding ainda era novidade. Vieram os prêmios no exterior, veio a CCXP, veio a abertura para autoras contra a predominância masculina. Também veio a onda de capas duras, os youtubers e os instagrammers e você passou a ler blogs – os que restaram – no celular.

Em 2020, estou escrevendo esse texto a cinquenta e tantos dias de confinamento por conta de uma pandemia imprevista e ainda sem perspectiva de final, me esforçando pra não ouvir os que tratam o momento como último de uma série de pregos (PIBinhos, fascistas, calotes etc.) no caixão do mercado editorial – quadrinhos aí incluídos. Havia quem reclamasse de tempos difíceis em 2010.

Em 2030, será que a gente vai ver 2020 como uma época tranquila? Ou que o pior passou, o mundo aprendeu e se preparou melhor? Bom, se houver mundo, ainda vai ter gente desenhando quadrinho. Nem que seja nos escombros. Se eu ainda estiver por lá, eu vou ler.

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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