Diários do isolamento #15: Jessé Andarilho

06/04/2020

Diários do isolamento

Dia 15

Jessé Andarilho

 

Como eu queria que vocês estivessem certos e que tudo isso não passasse de uma histeria.

Como eu queria que realmente fosse apenas uma gripezinha.

Se o histórico de atleta fosse realmente motivo para ter tranquilidade, as Olimpíadas não teriam sido adiadas.

A coisa tá séria. Aqui é o lugar em que houve o maior número de jovens infectados proporcionalmente falando.

Isso tudo a gente já sabe, toda hora passa na televisão, mas no WhatsApp a coisa é bem diferente. As informações chegam de uma maneira totalmente distorcida.

Ouvi dizer que a Globo comprou o vírus da China só para derrubar o presidente, e que o comunismo vai dominar o mundo e acabar com o capitalismo.

Vocês viram o cara que fez um vídeo falando que a feira estava sem frutas, verduras e legumes por causa do corona?! Na verdade, ele simplesmente fez um vídeo selfie com um ângulo que alterava a realidade.

E o povo que disse que o rapaz foi atropelado por um carro, morreu e no laudo do IML veio dizendo que o cara morreu de corona?!

Gente, é sério que vocês estão duvidando da Globo e acreditando no tiozão do Zap Zap? O que tá acontecendo com vocês?

Já foi provado que essas informações não passam de fake news, mas já que vocês precisam de argumentos pra provar que estão certos, podem continuar com essa vacilação de espalhar notícias falsas.

E aquele papo de comer alho, tomar muito café ou chá bem quente, ficar no sol bebendo água de quinze em quinze minutos?!

Isso tudo só fez você ficar fedendo a alho, com “subaqueira”, como minha avó dizia, e com barriga d'água. Teve até gente que bebeu água fervendo. Só Jesus na causa.

As ruas aqui da Zona Oeste do Rio de Janeiro estão lotadas de pessoas. Moro no bairro Campo Grande e, coincidência ou não, foi o local da cidade que mais votou no Bolsonaro.

Sério mesmo que o povo tá acreditando que ele sabe mais do que a Organização Mundial da Saúde?

Hoje acordei com um montão de crianças brincando no condomínio, os pais estavam sentados em rodinha conversando e confraternizando como se nada estivesse acontecendo. Que raiva. Senti vontade de xingar todo mundo, mas aí eu estaria dando motivo para a galera falar que eu sou barraqueiro. Não vejo problema em ser barraqueiro, morei muito tempo em barraco e tenho maior orgulho de ser barraqueiro.

Mas voltando ao assunto. Tô meio perdido e desorientado. Esse confinamento está mudando alguma coisa dentro de mim. Outro dia me peguei discutindo com desconhecidos no Twitter sobre paredão de Big Brother Brasil.

Na Bíblia diz que o mundo vai terminar em fogo. Acho que vou fazer como a maioria das pessoas da minha família e dizer que o mundo tá acabando e que Jesus está voltando.

Porque tá fogo mesmo!

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog