Diários do isolamento #18: Jarid Arraes

09/04/2020

Diários do isolamento

Dia 18

Jarid Arraes*

 

 

Hoje meu maior desejo é conseguir escrever.

Quero escrever, mas a dança faminta das notícias não me permite. Quero escrever poesia, começar a trabalhar num romance, mas a agonia das palavras ditas pelos outros me paralisa. O que eu quero escrever está grudado nas pontas dos meus dedos, quase se tornando parte das minhas digitais, e uma vez que isso se complete, minha voz ficará para sempre presa no meu corpo.

Tenho medo porque repito, repito. O Brasil se repete, repete.

Você usaria palavras melhores?

Meu corpo diz pra mim eu não consigo, me deixe em paz, me deixe falar, me deixe dormir, me deixe lidar com isso. Me deixe.

É impossível deixar que as coisas aconteçam, mas não tenho qualquer controle sobre elas. Assisto às coisas vivendo como vivem os vírus. O coração bate muito rápido todos os dias, não leio literatura, não acompanho lives de exercícios, de discussões interessantes, não consigo me mexer. Não consigo me deixar em paz. Meu corpo repete me deixe, me deixe.

Na madrugada, quando eu tentava dormir, um homem começou a gritar muito alto na rua e de um jeito muito desesperado. Seus gritos duraram por minutos. Virei pro meu namorado e disse o que tá acontecendo, o que é isso, será que ele tá sendo agredido, será que ele já foi agredido e precisa de ajuda, será que eu chamo a polícia, se fosse uma mulher eu chamaria, como vou conseguir deixar meu corpo em paz depois disso? Por que escuto tantos gritos no bairro onde moro? Esse foi perturbador. Me senti dentro de um filme em que alguém morre em público e ninguém faz nada.

O que tem sido feito pelo Brasil durante essa pandemia de coronavírus também é confuso. As declarações dos prefeitos e governadores vão e voltam. O presidente quer que as pessoas enxerguem o isolamento social como uma agressão à sociedade e aos outros. Eu escolho a quem escutar porque os argumentos científicos me dizem muito mais, muito melhor. Mas os outros também escolhem o que pensam ser mais coerente. Por isso vejo gente caminhando nas ruas, por isso a obra que constrói um prédio de classe média alta ao lado do meu continua. O dia inteiro de porcelanato sendo cortado. Mais um dia em que os mais ricos jogam xadrez e pensam, os peões podem ser sacrificados.

Ontem tive uma crise de risos, não lembrava a última vez em que ri tanto, os ombros mexendo e nenhum som saindo, o ar faltando. Consigo dar risada, sou capaz de usar meu humor para torcer a realidade e transformá-la em algo risível. Mas não posso dizer que rio de desespero. O que sinto se aproxima um pouco mais da palavra desamparo. E quando percebo isso, meus dentes não querem mais aparecer. Os meus olhos começam a se mexer para todos os lados, como se a ameaça estivesse por toda a parte. Em cada linha que leio, nas embalagens de comida, na caixa de e-mail que não me notícia qualquer trabalho remunerado. Meus olhos querem ser deixados em paz.

Minha sogra quer fazer um almoço de Páscoa. Depois que respondemos que não vamos, o que ela escreveu na tela do celular era puro desamparo. Vocês não querem me ver mesmo, né? O que não queremos é te matar, deu vontade de dizer. Mas é preciso aprender as palavras persuasivas, na medida certeira entre olha o perigo e não desista de aguentar.

Estou aguentando, mas não consigo escrever.

Coloquei musicais na televisão, vi um pouco da montagem de Frozen, lembrei de Les Misérables, assisti a Giulia Nadruz como Christine na montagem brasileira de O Fantasma da Ópera, pensei que musicais são uma das melhores coisas que existem no mundo. E então me veio um sentimento de luto. Pensei, se nada mais será como antes, se não sabemos quando isso vai melhorar antes de piorar, quando vou assistir a um musical de novo? Pela primeira vez durante meu isolamento, senti que poderia perder algo que move minha vida. Algo, não alguém. Pensei, acho que nunca vou assistir Frozen, Anastasia e a montagem brasileira de West Side Story. Todos os musicais foram interrompidos, adiados. Li no site A Broadway é aqui que o Andrew Lloyd Webber, criador do meu musical favorito, O Fantasma da Ópera, vai exibir alguns dos seus espetáculos pelo Youtube. É alguma coisa, mas não era isso que eu queria. Eu queria ir ao teatro, ouvir ao vivo naquele exato instante, chorar porque é maravilhoso. Penso, que pessoa minúscula eu sou por sentir luto só agora. Mas como posso achar a arte digna de luto menor, se também sou artista?

Eu não consigo escrever.

Você consegue?

O barulho da rua não ajuda. Os carros e motos passam apostando corrida uns contra os outros. E quando chega a noite, quando o bairro fica mais quieto, eu já estou exausta de tanto tentar. Demorei duas semanas escrevendo um conto que irá pra um projeto incrível, mas quando eu revisava, e revisava e revisava, eu só pensava que porcaria, como vou deixar que esse conto aconteça. Mas, eu juro, foi o meu melhor nesse momento. Talvez no início de março eu não pensasse assim, não escrevesse assim. Antes de ter os olhos envenenados pela instabilidade das coisas que acontecem.

Eu já soube escrever?

 

 

Meu apartamento está uma bagunça tão grande. Eu detesto bagunça, detesto ver as coisas fora dos seus lugares, detesto ver fios por cima de livros e gatos ao lado das bebidas e produto de limpeza largado na varanda, e cotonetes limpos pulando da caixa e se espalhando na bancada da pia, e uma sacola velha de pano em cima da cadeira que está longe da mesa, e copos, e pelos, pelos por toda parte. Eu gosto de jogar coisas fora e organizar tudo quando a ansiedade aperta meu pescoço com suas mãos cheias de unhas. Mas tudo o que consegui organizar foi meu cabelo e também, pela primeira vez desde que começou meu isolamento, passar hidratante no rosto.

As mãos continuam secas de tanto serem lavadas.

Meu corpo quer tanto ser deixado em paz, só que eu fico esfregando minha cara contra o computador, eu coloco tanta força, minha bochecha se amassa na tela de cristal líquido. Por que faço isso comigo? Por que acho que poderia não fazer? Minúscula, pessoa minúscula, que deseja conseguir ignorar.

Ontem conversei com uma amiga médica. Sua especialidade é oncologia pediátrica, mas já não atua exclusivamente em sua área. Disse que há colegas morrendo, que todo dia é uma perda, pessoas jovens, a carga horária duplicou, um médico da Unifesp morreu, tinha 36 anos. Ela disse que tenta se distrair, que conseguiu manter a terapia e o inglês (a mentoria de escrita comigo está pausada), mas disse que é total fachada, não consegue pensar em nada além do medo de perder e de morrer. As crianças com câncer ainda estão em situações sob controle, mas as ruas já estão cheias, quando sair do controle nos adultos vai sair do controle nas crianças também.

E isso é tudo de externo que consigo compartilhar. Porque o externo é cada vez mais interno. As crianças brincando no parquinho do prédio estão se derramando em mim, o barulho da rua, o jogo da política, o xadrez sacrificando peões, tudo começa a fazer parte de mim e meu corpo só pede para ser deixado em paz.

Hoje eu não consigo escrever nada além disso.

Peço desculpas.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

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