Diários do isolamento #28: Luisa Geisler

19/04/2020

Diários do isolamento

Dia 28: O baque

Luisa Geisler

 

Eu me pergunto se a maçaneta está realmente limpa. Os pacotes de comida, de papel higiênico, as latas. A tampa do cesto de lixo. A mesa em que coloquei sacola de mercado. Os pacotes de comida que comprei antes disso tudo, mas que podem ter algum vestígio do vírus. E tem pessoas que estão tão sem dinheiro que não conseguem ter uma sacola do mercado recente o suficiente para estar contaminada. Eu sou absoluta, absurdamente privilegiada — e esse é o baque.

Deve ser um momento ruim demais para as pessoas naquelas histórias de terror que moram na parede dos outros, diz um tweet de Brandy Jensen. Depois me pergunto se a frase é original dele, não uma cópia de uma cópia de uma cópia na internet. Depois me pergunto se daqui a pouco não é de uma conversa de bar em que um amigo disse. Depois me dou conta de que ninguém deveria estar num bar conversando. Meu fluxo de pensamento não é normal, e não sei se algum dia vou voltar à misofobia de antes — e esse é o baque.

Se é que o vírus deixa vestígios que duram a ponto de contaminar alguém semanas depois. Falamos que coronavírus prejudica mais pessoas de grupos A, B e C, mas ainda não temos um estudo feito com o Covid-19 em que todos se expõem igualmente ao vírus. A gente não sabe quantas pessoas não vão ao hospital. Falamos que 50% das pessoas são assintomáticas, mas nunca estudamos. Você pode ter tido o vírus e não saber. É só lançar uma moeda. A gente não sabe, não sabe de porra nenhuma — e esse é o baque.

Eu sempre achei que a palavra “germofobia” era real. Não está dicionarizada, nem no Aulete Digital, Michaelis Online ou Dicionário Digital Priberam da Língua Portuguesa. A Wikipédia me sugere “misofobia” no lugar. Definida pelo Aulete como “1. Psiq. Temor mórbido de sujeira ou de contatos, pelo receio de contaminação.” Aprendi uma palavra que se encaixa melhor no sentido de “germofobia” e nunca achei que meu vocabulário epidemiológico estivesse desfalcado — e esse é o baque.

Tinha perdido a senha de acesso ao internet banking: nome de usuário e senha. Preciso ir ao banco. Demoro oitenta páginas de Às seis em ponto, de Elvira Vigna, lidos em pé na rua porque a agência só permite três pessoas em fila dentro, com um metro de distância entre cada uma. A prosa de Elvira é ligeira, mas 80 páginas são cerca de uma hora. Indo, voltando, banho, perco a manhã. Ao voltar, me dou conta de que também não tenho uma terceira senha, para transações. Porque perdi tempo almoçando, e o horário de atendimento é restrito, preciso voltar à agência no dia seguinte. De volta a Elvira, à fila, para ser atendida por uma pessoa, por uma série de burocracias. A agência é perto de casa, por isso nunca me incomodei em resetar a senha perdida em 2016. A informação do ano em que parei de usar internet banking me foi dada pelo bancário mascarado. Bancário mascarado parece o nome de um super-herói ruim. Preciso ficar a um metro de distância das pessoas, e as pessoas precisam parar de respirar perto de mim — e esse é o baque.

Tenho relido livros que me são caros. Depois da semana de HQ, da poesia, agora voltei a Elvira. Queria que ela estivesse aqui. Nunca a conheci em pessoa, mas sua presença ecoa. Eu nunca tinha pensado a respeito do que leio e sua relação com o que estou passando naquele exato momento, nunca com tanta profundidade nem frequência — e este é o baque.

Esses baques o tempo inteiro. Como chegar na casa de alguém querido que sempre sentava na varanda. E a pessoa não está mais lá. Como chegar em casa depois de um dia pesado e ao abrir a porta, o cachorro não fazer festa (porque ele morreu tem anos). O susto do degrau a mais, o degrau de menos. Voltar a andar no chão depois de andar numa esteira rolante. Baques seguidos de baques, como tiros de metralhadora.

Há muitas discussões e contradições a respeito do título do livro/filme Laranja mecânica. O meu favorito é uma ideia cíclica. A ideia cíclica de que a humanidade se repete, os próprios capítulos do livro se espelham. Levemente diferente, mas igual. Em inglês, clockwork. Clockwork é mais uma ideia de um mecanismo, com molas e engrenagens, algo que move algo movido a corda — uma imagem seria o interior do relógio. Um dos potenciais sentidos é que laranja mecânica é por nossa sociedade orgânica (uma laranja) mas repetitiva (com a precisão de um relógio), repetindo erros com ritmo. E ao mesmo tempo, o absurdo de pensar numa laranja mecanizada, impossível.

Como se o som de fundo fosse ratatá. Como se o som de fundo fosse tumtum tumtum. Uma arma que mata. Um coração que bate. O clang clang dos engenhos da nossa laranja mecânica. Nossa trilha sonora do momento, desta situação, é essa série de baques. A nossa trilha sonora são nossos corações batendo.

“Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para”, como diria Karl Ove Knausgård na primeira frase de A morte do pai. Seguimos com nossos baques cardíacos enquanto pudermos. E seja por aceitar, seja por voltarmos a uma sombra de normalidade. Mas até que paramos.

 

***

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado a ser lançado em breve. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

 

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