Diários do isolamento #29: Jessé Andarilho

20/04/2020

Diários do isolamento

Dia 29

Jessé Andarilho

 

Essa semana foi sinistra. A coisa ficou séria. Até o ministro da saúde entrou na dança dos desempregados. Não tá fácil pra ninguém, imagina pra gente que não tem padrinhos e nem cargos.

Nunca gostei muito do Mandetta, mas ele vinha desempenhando um bom trabalho ao seguir as orientações da Organização Mundial da Saúde. E, de uma forma bem bizarra, fazer um bom trabalho no atual governo federal é desagradar ao presidente.

Outra coisa bizarra é a galera batendo panela contra o governo, a mesma galera que criticou e usou milhares de argumentos para defender a “causa” das panelas quando as coitadas sofriam ao serem usadas para atingir o governo anterior.

Isso é estranho pra todo mundo ou eu que tô pirando nesse isolamento?

Parece que falar sobre eles é chover no molhado, já tem muito jornalista falando e quem sou eu pra discutir política, governo e ministério. Pode dar a entender que é bobagem falar disso, que as ações deles não têm nada a ver com a minha vida e meu isolamento, mas a grande verdade é que tudo está relacionado.

Cada ação do presidente nesse momento que estamos passando afeta diretamente a nossa realidade. Toda vez que ele fala alguma coisa nas redes sociais, toda vez que ele sai pelas ruas, parece que liga um gatilho e acende um fogo no rabo de muita gente que do nada muda a opinião e faz tudinho que ele manda, tipo aquela brincadeira do “mestre mandou”.

Tenho alguns amigos que trabalham na área da saúde e que defendiam o isolamento com unhas e dentes no inicio, mas foi só o presidente falar mal e sair na rua que o discurso mudou. As pessoas estão mais preocupadas com o fato de assumir a besteira que fizeram votando nele, daí abraçam todas as atitudes dele como se fossem verdade absoluta.

Meu amigo que trabalha dirigindo Uber me mandou uma mensagem de áudio revoltado e ao mesmo tempo surpreso. Ele disse que ontem quase não pegou passageiro e, na hora que estava voltando pra casa, tocou o aplicativo, era uma corrida de Paciência até o Recreio. Uma boa corrida que ia salvar o dia dele.

O passageiro entrou no carro e nem ao boa tarde respondeu. Abaixou a cabeça e ficou no celular sem olhar pra frente. Meu amigo até tentou puxar assunto, mas o cara não respondia.

Assim que chegaram perto do endereço da corrida, eles tiveram que parar em um pequeno engarrafamento. Tinha alguns carros, motos e pessoas com faixas na mão.

– Esse povo não tem mais o que fazer, em plena quarentena quer sair pra rua fazer barulho a favor da ditadura –, resmungou meu amigo esquerdista raiz.

Na hora que ele terminou de falar, o cara levantou a cabeça, olhou bem dentro do olho do meu amigo através do espelho retrovisor e disse:

– O que foi que você falou?

Meu amigo analisou bem o sujeito e, considerando a camisa da seleção brasileira, o tom da pele e o fato de ele não ter nem retribuído o boa tarde, respondeu:

– Eu disse que ainda bem que esse povo tem o que fazer para mudar o nosso país. Ficar em casa não adianta nada!

Depois disso o passageiro abriu o vidro do carro e começou a gritar palavras de ordem a favor da ditadura.

Meu amigo teve que ficar a passeata toda buzinando e acompanhando a carreata.

Ser esquerdista morando em prédio que bate panela é fácil, difícil é ter que lidar com todo o tipo de pessoa pra levar o pão pra casa e ter que ser “legal” pra não receber poucas estrelas e não prejudicar o único rendimento que sobrou depois de tudo que estamos vivendo nos últimos anos.

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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