Diários do isolamento #42: Luisa Geisler

03/05/2020

Diários do isolamento 

Dia 42: Direito de resposta 

Luisa Geisler 

 

Ao ser questionado sobre o número de mortos por coronavírus, Jair Bolsonaro disse, em vídeo: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” 

O senhor presidente diz “e daí”. E daí, senhor presidente? 

E daí que 5 mil pessoas são 5 mil pais, mães, filhos, bebês, idosos, jovens com histórico, jovens sem histórico de saúde algum. Muitos contaminados por uma certa comitiva que veio de Miami. Em que o senhor estava.

E daí que quando tem aglomeração — por exemplo, a seu favor, ou a favor do retorno à movimentação econômica — é quando há o maior contágio. 

E daí que eu me pergunto quantas pessoas precisam morrer para se importar. Ou se é uma questão de quais pessoas. Eu me pergunto se é difícil entender que atropelados precisam de leito de UTI. Quando abre o comércio, as pessoas andam de carro e tem gente atropelada. Mas com pacientes de coronavírus ocupando a cama da UTI não é possível.  

E daí que nos Estados Unidos, foram 60 mil mortos. O país perdeu 58 mil na Guerra do Vietnã. E daí que 22 de abril o Brasil tinha perdido 2678 pessoas. E 29 de abril o total é 6.276. E daí que isso é crescimento exponencial. Pergunte aos seus amigos investidores como funciona, já que olhar uma linha para cima quase na vertical não parece suficiente para o seu QI.  

E daí que um Airbus A330 tem um máximo de 335 assentos. E foram 435 mortos só dia 29 de abril. Um avião cai por dia. 

E daí que os sem emprego não conseguem pedir o miserável auxílio. É um ótimo jeito de eliminar pobres, para quem os 200 reais que você sugeriu fariam uma diferença imensa. São 600, então imagina o que isso pode causar. 

Um vício de linguagem bem comum é o “e daí”. E daí, e então. E daí, o futuro. 

 

“Lamento”, você disse. 

Eu não vou ouvir a voz de uma minoria barulhenta. Uma minoria que no filme apocalíptico quer protestar pelo direito de ser mordido pelo morto-vivo. Eu vou me juntar ao coro. Ao coro de pessoas furiosas. 

E eu o chamo de senhor, porque é o que você é: um senhor feudal, um líder ditatorial. Você acha que é você quem manda. Eu não aceito suas desculpas. 

 

“Quer que eu faça o quê?”, você perguntou. 

Pare de achar que um milagre vai salvá-lo. Quero que pare de falar de hidroxicloroquina. Quero que pare de espalhar invencionice sobre a OMS.  

Quero que faça seu trabalho. Que tenha um governo consonante em objetivos. Que não trate a máquina pública como a sua máquina depiladora de pelos pubianos pessoal. Quero que pare de ser uma célula copiada de uma célula copiada de algum discurso do século XIX que já se tornou uma célula cancerígena que só quer destruir. Eu quero que o senhor lamente de fato. 

Quero que entenda como funciona contágio de uma doença sem tratamento ou cura. Quero que pare de chamar de gripezinha.  

Quero que pare de ocupar o tempo da televisão, da mente pública, para falar da piscina do planalto, falar do seu coração (que sabemos não existir), de seus chiliques políticos. Eu quero parar de ver sua cara e pensar “ah, não, o que é que foi agora?”. 

Você disse em 17 de abril que “Abrir comércio é risco que corro. Se piorar, vem para o meu colo”. E daí quando temos 5 mil mortos, você fala que é culpa dos governadores. Quero que assuma responsabilidade pelo que fala.

Quero recursos e dados em que possa acreditar

Saiba que você foi eleito por pessoas que votaram em você para defender os interesses delas. De quem é o interesse que haja filas de oito horas para receber auxílio emergencial, todas enfileiradas sem o distanciamento social recomendado?

Eu também quero voltar às ruas, também quero ir aos lugares que gosto, encontrar amigos. Mas eu entendo que cada semana que não há uma quarentena apropriada, isso é mais um mês de quarentena inapropriada no futuro. Que mortes afetam a economia, se é só nesses números que o senhor pensa.  

Eu quero que o senhor faça o seu trabalho. 

Eu quero vida, meu senhor feudal ditador presidente.

***

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado a ser lançado em breve. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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