Diários do isolamento #46: Jarid Arraes

07/05/2020

Diários do isolamento

Dia 46

Jarid Arraes

 

Minha sogra está com coronavirus. Sessenta anos.

Contou que no prédio onde ela mora estão obrigando os moradores infectados a sair.

O carro da pamonha voltou a circular por meu bairro. De vez em quando eu comprava pamonha. Quando o carro aparecia de noite e os vizinhos reclamavam nos grupos do bairro, eu sentia desprezo por eles. Mas, hoje, sei que muitos vizinhos não reclamariam da repetição o carro da pamonha está passando, cural, suco de milho verde, uma delícia, é mesmo delicioso, aceitamos cartão, é uma delícia, pamonha, o melhor suco de milho verde, cural, venham, é uma delícia. E eu não tenho com quem reclamar para que isso seja resolvido. Não existe um telefone que garanta, ao ser humano, humanidade.

Estou há dois meses sem encontrar meus amigos, mas amigos de amigos são infectados todos os dias. Alguns morrem.

Estou há dois meses sem encontrar minha sogra. Ainda assim ela foi infectada. O médico disse que ela não tem sintomas. Mas tem.

No prédio onde moro, está acontecendo uma obra no elevador “de serviço”. Quem precisa descer com cachorro, desce pelo “social”. Todos os que estão trabalhando, incluindo meu vizinho, também descem por ele. As faxineiras, diaristas e babás sobem por ele. As entregas de mercado também. Todos entram, sobem, descem e saem o tempo inteiro. E eu tenho vontade de ligar para o síndico e perguntar que burrice é essa, que irresponsabilidade é essa, o que é isso, por quê. Estou cansada de ouvir, todos os dias, o mesmo som de chave rodando, porta batendo e elevador chegando no meu andar. Cansada de ver a saída. Cansada de repetir a mesma coisa, como se eu mesma estivesse presa numa gravação do carro do fim dos tempos. Olha o carro do fim do mundo, é uma desgraça, não venham, não aceitamos desculpas, coronavírus, caixões enfileirados, é mesmo uma desgraça, não venham.

Em vários dias na semana, pessoas ao lado do meu prédio fazem churrasco no quintal e colocam música bem alto. Agora está tocando um forró igual ao forró que eu ouvia por obrigação lá no Cariri. Nunca imaginei que moraria em São Paulo e seria obrigada a ouvir as mesmas bandas de forró, com o mesmo alcance sonoro, enquanto as pessoas bebem, conversam alto e riem. Exatamente como era no Cariri. Eu não gosto de forró, eu detestava ser obrigada a ouvir. Eu não suporto ser obrigada a qualquer coisa.

Pela primeira em dois meses, senti muita vontade de sair para conversar com as amigas, beber, comer torrada com abacate e salmão, bem cheia de frescura, visitar a casa de uma amiga e ouvir que ela comprou pinot grigio porque sabe que é meu favorito, e escutar a música da Lady Gaga chamada Pinot Grigio Girls, e cantar no karaokê que me faz odiar ainda mais o calor, e quase me sentir sufocada pela quantidade de pessoas e o espaço apertado das mesas, senti vontade de passar de táxi pela Avenida Paulista, com a janela aberta, e fingir que o vento tocando meu rosto não está consumido por poeira e poluição, falta de ir ao Parque do Ibirapuera com meu cachorro e nutrir raiva por quem leva cachorro agressivo e deixa correr solto, senti saudade do cinema de sempre, da pipoca misturada com M&M’s, o refrigerante de máquina com o copo cheio de gelo, porque é assim meu refrigerante favorito, mas eu já tinha parado de beber refrigerante, então eu sinto falta mesmo, de verdade, é da morte de antes. A morte que pairava a vida como antes. A morte de agora não está planando por cima da cabeça. Ela está em tudo, colada em todas as coisas, acompanhando todas as pessoas, e é difícil não achar essa morte injusta, olhar para ela como uma morte que não é morte, é outra coisa distorcida, mas que mata.

Tenho que terminar meu tratamento de câncer. Tenho. Mas não pretendo, não quero sair. A morte não é mais a mesma morte. A anterior estava distante, a anterior foi empurrada para longe depois de duas cirurgias. A nova pode me alcançar com tanta facilidade. Tento ficar longe, tento há dois meses.

Eu tenho que terminar meu tratamento de câncer. Mas não pretendo. Eu sinto falta da morte de antes.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

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