Diários do isolamento #50: Elvira Lobato

11/05/2020

Diários do isolamento

Dia 50: O pior dos medos

Elvira Lobato

 

Atravessei a oitava semana de confinamento atormentada pelo cenário político do país e por um sentimento de culpa na esfera individual. Recusei o aperto de mão de um velho conhecido, por medo de contágio do coronavírus. Não me conforta saber que esta é a recomendação médica. Ele ficou com a mão estendida por longos segundos e reagiu à minha hesitação com a pergunta que eu não queria ouvir: “Está com medo de mim?” Respondi que não, mas meus olhos disseram o contrário.

Continuo a costurar máscaras de tecido para doar às famílias pobres da Baixada Fluminense. Minha máquina de costura pifou com a exaustão do trabalho e chamei um técnico para repará-la. Foi esse técnico — meu conhecido há quase dez anos — que ficou com a mão no ar à espera do ato recíproco que não aconteceu. Morador da Zona Norte do Rio de Janeiro, ele atravessou a cidade para atender minha solicitação e contou que eu tinha sido sua única cliente naquela semana. Como milhões de brasileiros neste momento, ele estava apavorado com a falta de um horizonte para o final da pandemia e com a ameaça real de faltar comida em casa.

A administração do prédio onde moro proibiu a entrada de prestadores de serviços, mas, ao saber que se tratava de máscaras para doação, o síndico autorizou o reparo no saguão do edifício. Desci com a máquina usando máscara, luvas e com uma garrafa de álcool em gel nas mãos. Coloquei a máquina sobre a mesa e me dei conta da mão esticada para mim. Recuei alguns passos para manter a distância recomendada de dois metros. A mão continuou à minha espera. Meu rosto queimou de vergonha.

Voltei para casa abalada pelo que tinha acontecido. Meu marido opinou que eu havia sido sensata e que o técnico, ao contrário, fora imprudente e até irresponsável.  Mas não me serviu de consolo. Sou daquelas que gostam da proximidade do outro, de ouvir as histórias dos porteiros, dos motoristas, das faxineiras. Nesse caos da pandemia me preocupo mais com a gente simples que está indefesa e à mercê do vírus do que com minha família, que se encontra protegida.

As lideranças comunitárias que redistribuem minhas máscaras na periferia de Nova Iguaçu me dão notícias sobre o avanço da pandemia por lá. Com o congestionamento dos hospitais públicos, os pobres tentam salvar seus infectados com soluções caseiras e medicamentos sem nenhuma eficácia comprovada contra o coronavírus. Há uma corrida por um remédio contra piolhos, sarna e vermes chamado Ivermectina. Meus informantes acreditam que tal vermífugo dê resultado contra o vírus se for usado no começo da infecção, e pediram minha ajuda para comprar o remédio na cidade do Rio de Janeiro. Ele dobrou de preço e sumiu das farmácias da Baixada Fluminense. A informação aguçou minha curiosidade, e telefonei para drogarias de bairros de classe média.  Constatei que o fenômeno acontece também na capital fluminense. O medicamento também desapareceu das prateleiras nos pontos na Zona Sul que consultei.

Na periferia do Rio, todos evitam ao máximo levar os parentes aos hospitais, onde a chance de contaminação é ainda maior. O recurso para aliviar os sintomas tem sido uma mistura caseira de várias ervas: hortelã, poejo, saião, assa-peixe, folha de graviola e agrião. Reajo com ceticismo e desconfiança às duas alternativas relatadas por minhas amigas da Baixada Fluminense, mas elas me fazem descer do mundo dos privilegiados para a realidade cruel dos desfavorecidos. “A gente precisa se agarrar em alguma esperança. Se o remédio de piolho não curar, pelo menos ele não vai matar o doente”, diz uma delas, com um fio de otimismo.

Quem sou eu para questionar a eficácia de remédios caseiros? Cresci no interior de Minas Gerais vendo minha mãe rezar crianças que padeciam de males misteriosos, como o quebranto e a “espinhela caída”. Católica fervorosa, Dona Nica tinha rezas para todos os tipos de males e doenças. Foi uma benzedeira requisitada. Quem sabe ela teria alguma reza ou benção contra a Covid-19 se ainda estivesse viva?

Passei o Dia das Mães sem a companhia de filhos e netos, o que me fez pensar muito em Dona Nica. Me separei dela pouco antes de completar vinte anos. Era o começo da década de 1970, e o país vivia sob uma ditadura feroz. Deixei Minas Gerais para morar no Rio de Janeiro, onde militei ativamente pela democracia. Vivemos novamente tempos sombrios na política. E aí está o maior de todos os meus medos. Não poder ir às ruas protestar contra o retrocesso. Assistir a tudo impotente, presa em casa, encurralada pela pandemia.

A semana que passou ficará marcada pela entrevista da secretária da Cultura, Regina Duarte, ao canal de notícias CNN, quando ela nos chocou por sua frieza diante dos milhares de mortos pela Covid-19. Reclamou da “morbidez insuportável” dos noticiários; disse ser uma pessoa leve e viva e que não quer arrastar “um cemitério de mortes” nas costas. “Não está legal. Não está legal”, resumiu diante do entrevistador estupefato.

Fiquei pensando no que a filha dela, a também atriz Gabriela Duarte, estaria sentindo nesse momento. Por curiosidade fui espreitar o Instagram da jovem atriz e me deparei com esta citação premonitória: “Abra a boca apenas se o que você está prestes a dizer é mais bonito que o silêncio.”

 

***

Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de NotíciasGazeta de NotíciasÚltima Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.

 

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