Dois homens

23/11/2018

Foto: Humberto Brito

 

Chovia. Estávamos presos no trânsito, à saída de Lisboa. “Deve ter havido um acidente”, comentámos. Seriam sete da tarde. Na faixa da esquerda, um autocarro parara no meio da via. “Será uma avaria?” O primeiro homem cruzou a estrada pela direita, atirando-se para o meio dos carros em passo de corrida. Vinha das obras: boné na cabeça, calças molhadas, botas sujas de tinta, saco a tiracolo. Não demorámos mais do que alguns segundos a entender que o autocarro parara no meio da estrada para o apanhar, embora não houvesse ali perto nenhuma paragem. Não era trânsito. Apenas o caos causado nas coisas por um coágulo.

O homem bateu à porta do autocarro, sorriu, a porta abriu, o jovem motorista acenou-lhe, e ele desapareceu dentro do veículo. O trânsito fluiu.

*

À minha janela, nestes dias de Outono, um grupo de jardineiros trata de um jardim. O segundo homem, rapaz de pele negra quase azul, distingue-se do resto do grupo, seis ou sete homens e mulheres jovens, com poucos dentes e rosto sofrido. Ouço-o cantar toda a tarde, enquanto corta relva, desenhando diagonais num relvado aqui perto. Canta um espiritual contínuo numa língua desconhecida, de pulmões abertos, uma canção de trabalho. O ruído do cortador de relva serve-lhe de ritmo. Não sei de onde veio e nunca me dás os bons-dias, quando nos cruzamos na rua. O seu canto é ancestral, vêm-lhe do estômago. Pergunto-me onde o aprendeu, quem lho terá ensinado, decerto muito longe daqui, noutro continente. Hoje não é um escravo e talvez nunca tenha sido. Ganha o seu salário, almoça à sombra de um choupo, enrola tabaco antes de pegar ao serviço.

No livro Teatros do tempo (Editorial Caminho, 2001), o poeta português Manuel Gusmão escreveu um verso que me acompanha há muitos anos e me lembra estes dois homens:

“Contra todas as evidências em contrário, a alegria.”

Ninguém ensina; nem se imagina como é árduo deixarmo-nos ir pela mão da alegria. Eu costumava pensar nela como um fantasma que se aborrece de assombrar algumas almas e as abandona. Agora penso que anda no nosso encalço, enquanto a procuramos com uma lupa, atentos a carreiros de formigas: penso nela, hoje, como uma sombra brincalhona, que gosta de nos ver atrapalhados.

***

Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) é autora de Esse cabelo (2015), Ajudar a cair (2017) e, mais recentemente, Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhias das Letras Portugal, 2018; a ser publicado no Brasil em 2019). Vive em Lisboa.

Djaimilia Pereira de Almeida

Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) é autora de Esse cabelo (2015), Ajudar a cair (2017) e, mais recentemente, Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhia das Letras Portugal, 2018; a ser publicado no Brasil em 2019). Vive em Lisboa.

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