Duas ou três coisas sobre Arundhati Roy

26/07/2017

Foto: Chris Boland

1. Arundhati Roy foi a primeira autora indiana a ganhar o maior prêmio de literatura da Inglaterra, o Man Booker Prize, pelo livro O deus das pequenas coisas. Na época ela era uma autora estreante, formada em arquitetura, que dava aulas de aeróbica para se sustentar. Ela demorou vinte anos para escrever o segundo romance, O ministério da felicidade absoluta, que acaba de ser lançado no Brasil.

O primeiro livro é uma saga familiar que se desenvolve a partir do reencontro dos gêmeos Estha e Rahel. O segundo tem dois protagonistas aparentemente desconectados – Anjum é uma jovem hermafrodita e transexual, que enfrenta as consequências de assumir sua sexualidade. Tilo é uma ilustradora que vai a Kashmir em busca de um ex-amante, e se choca com as atrocidades cometidas pelo governo indiano na ocupação do local.

2. O primeiro romance da autora trata de temas mais íntimos, tendo as questões coletivas da Índia como pano de fundo. No segundo livro, tem-se a sensação de que o principal protagonista é, na verdade, o país.

Relendo meu bastante sublinhado exemplar de O deus das pequenas coisas, eu encontrei uma passagem que parece ter sido escrita para ilustrar essa diferença. A protagonista Rahel deixa a Índia e se casa com um americano. Ele adora a mulher, mas se ofendia com seu olhar quando faziam amor. Era como se o olhar, Arundhati escreve, pertencesse a outra pessoa:

“Ele não sabia que em alguns lugares, como aquele de onde vinha Rahel, há diferentes tipos de desespero, todos competindo por primazia. E que o desespero pessoal jamais seria suficientemente desesperador. Que algo acontecia quando o desespero pessoal dava lugar ao vasto, violento, cíclico, contínuo, ridículo e insano tumulto de uma nação. Que o Grande Deus uivava como um vento quente e demandava obediência, e o Pequeno Deus (confortável e contido, privado e limitado) acabava cauterizado, rindo anestesiado da própria temeridade. Acostumado com a confirmação de sua própria inconsequência, o Pequeno Deus se torna resiliente e indiferente. Nada importava muito, por que Coisas Piores aconteceram. Do país que ela vinha, equilibrado para sempre entre o terror da guerra e o horror da paz, Coisas Piores continuavam acontecendo.”

No primeiro romance, o Pequeno Deus se sobressai através da trágica e lírica descrição das relações familiares. No segundo, as contradições da Índia se tornam por demais latentes para que o Pequeno Deus possa ser ouvido. Coisas Piores acontecem o tempo todo. Tanto que, quando Anjum, de O ministério da felicidade absoluta, decide operar as genitálias e descobre que não pode mais ter orgasmos, o fato é visto como secundário. Para os transexuais, ou hijras, como diz um personagem, todos os conflitos são internos, e diante da realidade caótica, inferiores.  

3. O ministério da felicidade absoluta é um romance complexo, rico de personagens e profundamente belo. Lembra um pouco As mil e uma noites, Cem anos de solidão, de Garcia Márquez, e Os filhos da meia-noite, de Salman Rushdie.

É escrito por uma autora que passou os últimos vinte anos se opondo às desigualdades da Índia, produzindo durante o período livros e artigos de não ficção que a fizeram malquista no próprio país. Arundhati protestou contra testes nucleares, intolerância religiosa, corrupção e os efeitos nocivos da globalização nas classes mais vulneráveis do país. Nem Gandhi foi poupado – Arundhati condena seu silêncio sobre o sistema de castas.

Esta carga emocional e de informação aparece em O ministério da felicidade absoluta com tanta força que, às vezes, é questionada como matéria-prima da literatura. Em uma das cenas, Tilo encontra um caderno com pensamentos soltos de seus tempos durante os conflitos de Kashmir, e lê:

“Eu queria escrever uma daquelas histórias sofisticadas em que quase nada acontece, e mesmo assim existe muito que pode ser escrito. Mas isso não pode ser feito em Kashmir. O que acontece aqui não é sofisticado, existe muito sangue para boa literatura”.

É claro que aqui Arundhati está sendo sarcástica. “Você acha que falar inglês o faz automaticamente inteligente?”, ela faz Anjum dizer, em outro momento irônico do  livro. Ela prova, com O ministério da felicidade absoluta, que é possível fazer arte do caos, e que o resultado será completamente diferente dos livros esteticamente perfeitos e fiéis às exigências lineares de plot produzidos nos países desenvolvidos onde existe a paz de espírito para tal.

4. A resenha sobre O ministério da felicidade absoluta publicada na revista New Yorker ressalta as fortes cenas do livro: “existe o sentimento de que é preciso alguma salvação em escala maior, alguma grande limpeza, o que, quando acontece, não dá conta do trabalho”. Mas o desconforto da narrativa e a falha na redenção parecem ser intencionais. Arundhati escreve sobre aqueles que não podem fechar o livro depois de uma cena marcante, não vão encontrar nesta vida nenhum tipo de redenção. É a constância do desespero sua principal mensagem. Seus personagens são mortos-vivos, “pessoas que fingem viver, quando na verdade já morreram”, diz um dos muitos protagonistas. Esta simbologia é tão forte em O ministério da felicidade absoluta que, depois de sobreviver a um massacre, Anjum vai morar em um cemitério. Constrói ali uma vila, que abrigará os esquecidos - mendigos, órfãos e animais abandonados.

5. O ministério da felicidade absoluta é um livro que retrata a Índia em essência. Mas também nos faz pensar no Brasil, e em seus absurdos e contradições, como os da Índia. As múltiplas histórias se desenrolam como filigranas, os conflitos internos e aspirações são destruídos por uma realidade perversa, que torna os personagens incapazes de escolher seus destinos. Essa impotência diante do coletivo, tão familiar para os brasileiros, faz o leitor se sentir cúmplice de Arundhati. 

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Martha Batalha nasceu em Recife em 1973, e cresceu no Rio de Janeiro. Jornalista com mestrado em literatura pela PUC-Rio e em Publishing pela NYU, trabalhou em jornais como O Globo e criou o selo Desiderata, hoje da Ediouro. Vive na Califórnia. Em 2016, lançou pela Companhia das Letras seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão.

 

Martha Batalha

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