Elas por elas: Martha Batalha

09/03/2018

Por João Lourenço

Foto: Jorge de Luna

Para celebrar a semana do Dia Internacional da Mulher, conversamos com quatro escritoras da Companhia das Letras sobre o papel da mulher na ficção. Além de compartilhar suas descobertas mais recentes, elas também falam sobre mulheres inspiradoras que influenciaram seu trabalho. 

Hoje, confira o papo com Martha Batalha, autora de A vida invisível de Eurídice Gusmão

* * *

Na década de 1970, Joyce Carol Oates disse em entrevista à Paris Review que existem algumas desvantagens para mulheres na ficção. Ela disse, por exemplo, que pelo simples fato de ser mulher ela não é levada a serio pelos críticos do sexo oposto. Para você, a afirmação de Oates permanece verdadeira? Quais as vantagens e desvantagens em ser uma escritora de ficção? 

Vou responder com um exemplo: em uma das crônicas do excelente livro Trinta e poucos, Antônio Prata diz que precisava terminar a revisão de um original, mas em vez de trabalhar estava vendo na TV um jogo de futebol. No fim do texto ele ouve um sussurro: é Nelson Rodrigues dizendo que nesta vida o importante é deixar de cumprir uma tarefa em plena segunda-feira para ver Irã e Nigéria empatarem no zero a zero. 

E se fosse uma mulher a escrever a mesma crônica? E se ela tivesse dito: tenho este prazo para cumprir, mas passei a tarde no Pinterest, vendo dicas de decoração escandinava? A crônica se tornaria na hora um “texto mulherzinha”. E, mesmo se nossa cronista hipotética fosse corajosa para publicar algo assim, ela não poderia citar Clarice Lispector ou Elsie Lessa em uma situação similar, como Prata fez com Nelson Rodrigues, porque elas também tiveram que se censurar para serem levadas a sério.

Por muitos anos uma instituição americana chamada Vida analisou as resenhas de livros publicadas nos principais veículos americanos e ingleses para definir o gênero dos resenhistas e dos autores escolhidos. As mulheres apareciam sempre em menor número, como autoras de livros e de resenhas. E quem dera se tivéssemos que enfrentar apenas a questão matemática, mas existe também o pressuposto de que homens fazem literatura universal enquanto as mulheres contam histórias. O mais triste é que as próprias mulheres internalizam estes conceitos, como leitoras e resenhistas. A crítica é mais implacável para escritoras, nas opiniões ou com descaso, como se precisássemos ser punidas pela ousadia de escrever. 

 

Qual sua personagem fictícia favorita? 

Difícil falar de alguma, porque todas de quem gosto terminam de forma trágica. Madame Bovary, Anna Kariênina, a Luisa do Primo Basílio, a Bertoleza de O Cortiço, a Madalena de São Bernardo, todas estas se suicidam. Macabea é atropelada, Capitu morre no exílio. Um final feliz para estas personagens tornaria o livro inverossímil, o que diz muito sobre as mulheres das épocas em que foram escritos.  

Prefiro então citar uma personagem de não ficção, a protagonista e narradora de Comer, rezar, amar. Elizabeth Gilbert deixa o marido e o casarão em um subúrbio americano, vai passear e comer pizza na Itália sem ter medo de engordar, se manda para a Índia para aprender meditação e termina na Indonésia, onde vive um romance com um brasileiro que deixa as leitoras com inveja. Não é o que toda a mulher que está infeliz deveria fazer? E depois ela ainda abandona o brasileiro porque se apaixona por uma amiga. É esse o tipo de heroína que eu gostaria de ver mais, na vida real e, consequentemente, na ficção. Mulheres que arriscam, que vivem em vez de morrer. Espero que a sociedade produza mais mulheres assim para que possa haver mais finais felizes na ficção. 

 

Se você tivesse que escolher um livro para figurar em todas as bibliotecas da rede pública, qual seria? 

Muito antes de Chimamanda Ngozi Adichie se tornar pop com seu manifesto feminista, a jornalista brasileira Heloneida Studart escreveu um livrinho chamado Mulher, objeto de cama e mesa. Está tudo ali – a mente atrofiada da mulher confinada ao lar, a falta de perspectivas, o fim da vida “útil” quando a beleza se esvai. O fato deste pequeno livro estar esgotado, enquanto mães continuam comprando para as filhas que vão casar o Sebastiana Quebra Galho e Dona Benta, explica por que estamos, em 2018, discutindo as mesmas questões de 1974, quando o livro de Studart foi publicado. A cópia que tenho aqui foi da minha mãe, e estou esperando que minha filha – e filho – tenham a idade apropriada para lerem. Deveria estar nas salas de aula, bibliotecas, e ser passado de geração para geração. 

 

Durante sua formação, qual escritora mais te impactou? Você recomenda algum livro especifico da autora? 

Lygia Bojunga Nunes tem uma escrita tão límpida que até hoje volto aos livros dela para aprender sobre simplicidade. Eu ainda me lembro da semana em que evitei o recreio da escola para sentar no canto da escada com Angélica sobre os joelhos. Eu tinha 7 anos, e foi o primeiro livro “grande” que li, com mais palavras que imagens. O sofá estampado, A bolsa amarela, Os colegas, Corda bamba, Angélica, são todos clássicos. 

 

Qual foi a sua última grande descoberta literária? 

Sou uma leitora anacrônica, ou seja, é raro eu ler um livro logo após o lançamento. Não tenho acesso imediato a títulos nacionais, por morar no exterior, e a lista de autores de língua inglesa que quero ler aumenta a cada dia. Às vezes a espera é de meses, às vezes de anos. Outro dia eu descobri Ann Beattie. Seus contos têm um estilo fluido, é incrível como consegue trocar de temas e cenas de modo tão sutil. Fiquei feliz por descobri-la, achei genial, o que provavelmente todo mundo já achou 40 anos atrás, quando ela começou a publicar. No Brasil eu fico com Anderson França, pela força e peculiaridade da voz, origens e inventividade com a língua. França tem um ponto de vista raro e necessário nos meios intelectuais. 

 

Literatura feminina. Às vezes, esse termo soa excludente, ruim, quase como um subnível de literatura. Além das razões comerciais, você acredita que essa divisão em gêneros ainda é importante? 

Você já ouviu falar de literatura masculina? Já ouviu algum resenhista dizer que O complexo de Portnoy, de Philip Roth, em que o narrador fala de sexo, masturbação, mais sexo e masturbação, é um exemplo fidedigno de literatura masculina? Já ouviu alguém dizer que O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli, em que o protagonista se apaixona por uma Bunda (com caixa alta), é outro belo exemplo de literatura masculina? 

Essa não é uma discussão de mérito, mas de percepção. Enquanto livros como estes foram considerados literatura, e consequentemente dignos de serem lidos por leitores e leitoras, outros escritos por mulheres foram restritos ao universo de leitoras. Para mim a grande questão é por que a literatura feita por mulheres e que aborda temas femininos é considerada menor. Por que escrever sobre filhos, cozinha, relacionamentos, família, diminui o peso literário de um livro. Mas isso está mudando. Por exemplo, outro dia eu li o conto “Love Story”, de Samantha Hunt. É sobre as angústias de uma mulher após a maternidade. As dificuldades no casamento, as mudanças no corpo, a crise de identidade, o medo de ter se tornado apenas mãe. O conto não foi publicado em uma revista feminina, mas na New Yorker. E como eu fiquei feliz de ver um conto de temática profundamente feminina ser levado a sério pela revista mais intelectual dos Estados Unidos. 

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João Lourenço é editor at large da revista semestral *ffwMAG* e escreve sobre cinema, literatura, música e comportamento para publicações como Harper’s BazaarABD Conceitual. Atualmente, ele planeja lançar uma revista literária independente nos EUA e está terminando de escrever uma coletânea de contos.

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