Em tradução (Ergatividade)

26/12/2018

Foto: Shutterstock

 

Eu citei aqui, mês passado, uns versinhos de uma música da Regina Spektor que falam de “se perder nos sons” que você ouve na tua cabeça. 

Isso é meio que a história da minha vida. 

E… só da minha?

*

A ergatividade é uma propriedade, para nós muito estranha, que caracteriza alguns idiomas. O mais conhecido deles (dada sua posição bem no meio da Europa) talvez seja o basco. 

A coisa funciona mais ou menos assim.

Na nossa cabeça, a palavra cachorro tem a mesma função nas frases o cachorro anda, de um lado, e o cachorro come ração, de outro. Ela é ‘sujeito’ do verbo, como diria a gramática escolar. 

Ok?

Ok.

Pois bem. Numa língua ergativa (ou ergativa-absolutiva, pra ser mais preciso) não é bem assim. Pra os falantes dessas línguas, as palavras que compartem uma mesma função naquelas duas frases são cachorro, na primeira e ração, na segunda. E pra eles, portanto, essa função não é necessariamente a de ser ‘sujeito’ do verbo. E nem mesmo a de ser ‘agente’, que é outra noção que a gente entende mais ou menos bem (ainda que a sobreposição de ‘agência’ e ‘posição sujeito’ seja complicável de trocentas maneiras em português). Pra eles, essa posição é mais ou menos a de ‘paciente’, entidade que sofre o efeito do verbo.

Isso é profundamente contra-intuitivo. É daquelas coisas boas de usar pra mostrar que o camaradinha que acha alemão difícil, ou, sei lá, russo, ainda tem que agradecer porque esses idiomas estão no mesmo tronco que o nosso (o das línguas ditas indo-europeias), e funcionam mais ou menos do mesmo jeito. Como é que você entende um idioma com uma noção de verbo tão doida quanto a do basco?

Um jeito bom de tentar jogar ao menos um luz, mostrar ao menos a possibilidade, a ‘concebibilidade’ da coisa, é tentar achar momentos em que idiomas ‘normais’ também possibilitam construções com cheiro de ergativas. Em inglês é bico. Tem até uma categoria toda de verbos que os linguistas consideram tipo ‘meio-ergativos’. Em português é mais cabeludinho.

Um exemplo ok, pelo menos, é o do verbo ‘afundar’, em contexto náutico.

Pense na frase o capitão afundou o barco e, depois, em o barco afundou

Fica pelo menos possível entrever aquele outro tipo de mecanismo. Fica claro que a palavra barco pode ter o mesmo papel nas duas sentenças (apesar de, na nossa terminologia, ser objeto numa e sujeito na outra). E fica claro que esse ‘papel’ é não-agentivo.

Ufa.

Deu pra vislumbrar, ao menos?

*

Ontem de madrugada teve uma assalto na escola de inglês aqui na frente de casa. A gente acordou com o barulho.

Eu demorei pra dormir por causa da empresa de vigilância que chegou fazendo estrondo e tal. Mas demorei especialmente porque não consegui me convencer a tentar dormir enquanto não encontrasse um bom exemplo de uma construção ergativa em português.

 

Porque eu tinha lido um artigo sobre ergatividade de tarde?

Sim, claro.

Porque eu queria ter algo na ponta da língua caso algum aluno algum dia em alguma situação perguntasse?

Sim, claro.

Mas por que no meio da madrugada, Caetano?

*

Eu sou professor: sou ‘explicador’. Eu sou tradutor: sou ‘explicador’.

Eu escrevo as minhas coisas: sou ‘expositor’.

A minha cabeça vive cheia de vozes, de frases, de discursos preparados, de narrativas em desenvolvimento.

 

Eu ouço em minha mente tantas vozes, ouço em minha mente tantos verbos. Eu ouço em minha mente toda a música. E isso me derruba. E isso me comove.

 

É a minha tradução pra lá de livre da música da Regina Spektor. Que eu imagino que você, que escolhe uma coluna sobre tradução num blog de uma editora literária, não ache assim tão estranha como descrição do ruído dentro da cabeça de um outro leitor, teu semelhante, teu irmão.

*

Feliz Natal.

***

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James JoyceDavid Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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