Em tradução (Joyce)

11/08/2016

Por Caetano Galindo

5412968573_eca125958c

Recentemente eu li o belíssimo romance The Crimson Petal and the White, de Michel Faber. Na semana anterior eu tinha lido The Book of Strange New Things, que me deixou encantado. Aí li correndo Under the Skin e depois encarei o romanção histórico. Sabe como, né? Quando você quer ler tudo de um autor.

Depois de terminar o Crimson Petal, eu descobri que ele tinha escrito alguns contos, de início pra aquietar os leitores que queriam um “volume dois”. São contos com personagens do romance, às vezes em momentos anteriores, às vezes depois da ação descrita ali. Até o destino da personagem principal, a prostituta Sugar, fica mais ou menos iluminado.

Me deu vontade de sair recomendando pra tudo quanto é autor bom esse negócio de reaproveitar as personagens.

Claro que Balzac meio que inventou o jogo, nem que pra isso tivesse, como teve, que mudar o nome de personagens de obras já publicadas anteriormente. Claro que Shakespeare (Henrique, Falstaff) tinha feito isso antes. Claro que Conan Doyle fez Sherlock Holmes virar grife. Claro que, no Brasil, Rubem Fonseca já brincou disso, Dalton Trevisan e, mais recentemente, Cristovão Tezza com a sua Beatriz, que já esteve em dois livros (um romance e um de contos) e deve voltar em novo romance este ano.

E em todos esses casos me parece que a gente encontra uma maneira bem poderosa (talvez precisamente por ser “fraturada”) de conhecer mais a fundo aquelas personagens… Uma maneira que, no nosso tempo obcecado por séries de televisão, me parece ter alguma coisa a ver com a dinâmica da “longa duração” dessas narrativas que duram 5, 7 anos…

Curiosamente, Joyce também participou da brincadeira.

Claro que ele foi diferentão, e fez a coisa ao contrário. Se tivesse escrito o Ulysses e aí saído reaproveitando as personagens, tudo bem, a gente estaria em casa. Mas o que ele fez foi escrever seu grande romance usando como protagonista o herói de seu romance anterior, Um retrato do artista quando jovem, e usando como figurantes, ou pessoas mencionadas de passagem, cerca de trinta personagens de seu livro de contos, Dublinenses.

Os três livros foram publicados num intervalo de oito anos. Para o leitor de hoje, no entanto, que pode ter os três à mão ao mesmo tempo (aguardem a minha tradução de Dublinenses!), eles podem funcionar em qualquer ordem.

Como os dois livros menores são em alguma medida “mais simples”, é normal recomendar que eles sejam lidos antes. Mas a experiência de usar os dois como “consolo” depois do fim do Ulysses, mais ou menos como eu fiz com os contos do Faber, também é muito interessante…

No caso de Um retrato… que será lançado este mês aqui na Penguin-Companhia, o que rola é uma verdadeira explosão das ideias que o leitor elabora a respeito de Stephen Dedalus durante o Ulysses. Como eu acho que já disse aqui, depois de traduzir e anotar o Retrato, depois dessa leitura “funda” que é a tradução, cada vez menos me parece que ele seja um livro que “prepara” o Ulysses: ele é efetivamente a primeira parte do Ulysses, que, na medida em que seja possível, fica “mais perfeito” se lido junto com seu irmão “menor”.

Menor?

Bom… não é crime ser menor que o Ulysses.

* * * * *

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Twitter

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog