Há um momento, em Três Mulheres, um dos vídeos da exposição de Bill Viola que até setembro fica no SESC/Paulista, em que Helena Ballent, então uma menina, olha para trás.
Não quero descrever o vídeo, uma das coisas mais bonitas que você pode ver. Mas digo apenas que, num nível alegórico bem acessível (sem grandes leituras minhas, por extensão) ele trata de nascimento e morte, sucessão de gerações. Uma mãe guia primeiro a filha mais velha e depois a mais nova rumo à “vida” e, depois, de volta ao mundo de não ser de onde provieram. E é nesse momento, nesse retorno, que Helena, a mais nova das irmãs, olha para trás, para a câmera, olha para você.
Aqueles vídeos contam com um tipo de “sujeição” que não sei se todos os espectadores terão: são apenas nove obras em exposição, mas eu diria que ao menos uma hora e meia é o que você deve gastar, para assistir a todos eles na integralidade, e decidir ainda retornar aos preferidos. Ponha lá duas horas.
Eu sou professor da área de letras. Provavelmente sofri uma overdose de mitos gregos na minha formação. Mas o peso daquela cena, pequena, quase oculta, num momento final do vídeo, em que acredito que boa parte das pessoas já terá desistido de assistir, me deixou profundamente comovido. Demais.
E o problema é que, se disse que não quero descrever o vídeo, a dificuldade real é que não posso. Posso até “descrever”, ou seja, narrar passo a passo o que se passa. Mas não tenho como alcançar o efeito que ele pode causar. Isso está além (aquém?) das palavras.
A música, as artes plásticas, têm esse poder a sua disposição. Esse poder de prescindir da nossa alminha racional, verbal, silogística. A literatura, que deita e rola precisamente nisso, por vezes decide se esforçar para se livrar da obrigação de significar.
Como atingir com letras o efeito daquele olhar de Helena Ballent?
Bill Viola ,Três Mulheres, 2008
155.5 cm x 92.5 cm x 12.7 cm ; 9:06 minutos
Artistas: Anika Ballent, Cornelia Ballent, Helena Ballent
Foto: Kira Perov © 2008 Bill Viola Cortesia: Bill Viola Studio e BLAINSOUTHERN GALLERY
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Joyce passou boa parte de sua carreira lidando com esse problema.
O parágrafo final do conto “Os mortos”, de Dublinenses (e minha tradução do livro deve sair ainda este ano também) é um esforço precisamente nessa direção. Um esforço inicial para desfazer o sentido em efeito estético.
O Finnegans Wake, publicado 23 anos depois, é todo ele uma tentativa de romper essa barreira.
T. S. Eliot, cuja carreira se desenvolveu em grande medida em paralelo com a de Joyce (o americano era seis anos e meio mais novo; viveu muito mais, mas sua poesia de fato se encerra coisa de dois anos depois da morte do irlandês), também encarou essa questão, de várias maneira: mas especialmente na última série de poemas que deu a público, seus Quatro Quartetos.
O curioso, no entanto, é que se Joyce decide de vez sufocar o “sentido” em som e em evocação, Eliot tenta abusar dos mecanismos estruturais da música precisamente na sua poesia mais “argumentativa”, naquela em que ele mais quer dizer alguma coisa a seu leitor. Ele quer a música como base sobre a qual erguer um edifício de palavras
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Mas Helena Ballent olha para trás. A cada página do Finnegans Wake. E naqueles momentos dos Quartetos em que você se vê assolado por palavras que, de certa forma, sente ser quase irrelevante entender… Palavras que cantam e se transformam em efeito, em beleza, mesmo quando nascem de uma citação de uma mística do século catorze, e aparecem numa língua que você nem reconhece de pronto.
O pecado é convindo...
É.
Helena te olha.
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.