Escrever, sofrer, reconstruir

16/10/2017

Por João Silvério Trevisan

Foto: João Silvério Trevisan

Foi muito difícil o processo de escritura de Pai, pai. Valeu por uns dez anos de análise. Mergulhar em situações tão duras do meu passado exigiu uma dose extraordinária de flexibilidade psicológica – da qual eu não parecia capaz, enfraquecido por um período de depressão, quando comecei a escrever. Lembranças costumam grudar na alma como craca em casco de navio. Revolver a memória implica sempre uma manipulação dessa craca emocional, que, às vezes, já faz parte da pele da alma. Por isso, eu ficava incomodado, tinha coceiras no corpo, perdia o sono e podia repentinamente derramar rios de lágrimas. A água dos meus olhos vertia diretamente daquele poço profundo onde repousam os sentimentos, que se situa na fronteira entre o material e o impalpável. Se as dores psíquicas doem no próprio corpo, não é por acaso. O escritor Paul Bowles já dizia que “a alma é a parte mais desgastada do corpo”. Ao meter o dedo nas feridas da alma, a gente não encontra um compartimento estanque: mexe também na vida cotidiana do corpo. E revolver o passado pode ser uma faca de dois gumes.

Felizmente, a utilização dos recursos da escrita literária é o lado curativo desse movimento de mão dupla. Ao resgatar as memórias, o projeto literário exige uma construção que tem o dom de oxigenar partes sombrias da psique, levando a uma revisão positiva, que beira o processo analítico. Daí porque, nesse mergulho doloroso, eu encontrava também minha tábua de salvação. Mas o processo não foi difícil apenas no período de escritura. A cada vez que eu precisava rever as provas durante a preparação do texto para publicação, lá vinham de volta os fantasmas e demônios que me faziam gemer de medo. Quando terminei os trabalhos de revisão e me vi diante dos originais prontos, veio o pânico ante a constatação óbvia de que eu iria ser lido, indistintamente. Por gente que desconheço. Que sequer imagino. Gente que vai me desvendar mais do que eu supunha – ou gostaria, ou precisaria. Pus as mãos na cabeça: escrevi em excesso! Ao tirar minha roupa em público, botei meus demônios para tomar sol e isso tudo estará publicado num livro que expôs o mais recôndito da minha alma. Confesso que senti uma ponta de pavor. Os julgamentos sempre soam mais apavorantes quando vêm do desconhecido. Definitivamente, eu fiz um mergulho no Unheimliche freudiano – aquele elemento familiar que é ao mesmo tempo misterioso e, como tal, me assombra. De agora em diante terei que me confrontar com o Outro, esse desconhecido leitor que me é familiarmente assustador.

Não tenho dúvidas de que, nestes meus 73 anos, continuo com a alma cheia de craca, não obstante ter trabalhado tanto para limpar meu casco espiritual. Se eu me sinto mais aliviado depois de empreender a viagem dessa escritura? Seguramente não. A viagem não terminou – nem terminará – aqui. Enquanto a gente navega na superfície do dia a dia, novas encrencas vão aderir no casco duro da alma. Com Pai, pai eu não encerro o processo. Não posso, não consigo. Por isso tenho dois outros projetos – aliás, anteriores a este – que tratam de duas outras grandes dores. O primeiro, sobre um irmão querido que, ao morrer tão cedo, me deixou órfão de fraternidade. O outro, sobre o final de uma grande história de amor que parecia eterna e acabou por morrer na praia. Juntos, comporão exatamente uma Trilogia da Dor. Pago pra ver se sobreviverei depois disso.

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PAI, PAI
Sinopse: 
João nasceu em Ribeirão Bonito, interior de São Paulo, filho mais velho de uma família de classe média baixa. Desde o início, acompanha a forma rude como o pai José trata sua mãe, de origem mais humilde. É vítima, ainda criança, da violência de José, que não aceita sua natureza de “menino maricas”. Antes de completar 10 anos, João entra num seminário, para escapar do ambiente de casa. “Eu iniciava meu processo de ser outro, um homem, sem deixar de ser o mesmo filho de José, o cachaceiro.” Depois de abandonar o seminário, ele busca sua liberdade, e deixa o Brasil da ditadura para conhecer o mundo. Atravessa graves momentos políticos na América Latina e vivencia a contracultura nos Estados Unidos. Mergulha na escrita e nas artes. Mas a sombra do pai continuará sempre consigo.

 

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João Silvério Trevisan tem treze livros publicados, entre ensaios, romances e contos. É outor do romance Ana em Veneza e do ensaio Devassos no Paraíso, entre outros. Realizou também trabalhos como roteirista e diretor de cinema, dramaturgo, tradutor e jornalista. Dirigiu o longa-metragem cult Orgia ou O homem que deu cria (1970), proibido pela ditadura durante mais de dez anos, e o curta Contestação (1969), realizado clandestinamente. Recebeu três vezes o prêmio Jabuti e o prêmio da da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), o último deles pelo romance Rei do cheiro (Record, 2009). Pai, pai, seu romance mais recente, acaba de sair pela Alfaguara. 

 

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