Família feliz não faz literatura - Mateus Baldi entrevista Martha Batalha

03/05/2018

Houve um tempo em que Ipanema tinha um castelo construído sob encomenda de um diplomata. Próximo ao que viria a se tornar a Casa de Cultura Laura Alvim, o pitoresco edifício foi demolido no começo dos anos 1960 e não deixou muita história além do que sempre se soube – erguido por ordem de Johan Edward Jansson, cônsul sueco que chegou trazendo a esposa adoentada a tiracolo. Partindo dessa destruição da memória coletiva, Martha Batalha ergueu seu segundo romance em torno dos Jansson para narrar a trajetória da classe média ao longo de quase cem anos de História.

Nascida no Recife e criada no Rio de Janeiro, Martha vive nos Estados Unidos, fez mestrado em publishing na NYU, fundou a editora Desiderata e tomou o mundo literário de assalto quando escreveu um romance tão singelo quanto poderoso – lançado em 2015, A vida invisível de Eurídice Gusmão chegou às prateleiras brasileiras já vendido para mais de 10 países. As resenhas elogiosas posicionaram Martha nos holofotes e deixaram uma pressão inescapável para o segundo livro.

- Eu tinha a sombra do primeiro livro o tempo todo – ela diz enquanto toma uma água, sentada no canto de um restaurante no centro do Rio de Janeiro. – Acho que com Nunca houve um castelo eu perdi aquela liberdade solitária do primeiro livro, aquela coisa de ninguém saber o que você é, o que você tá fazendo.

- Quando o livro começa, Estela está jogada em uma cama no começo de 1968, chorando porque descobriu algo sobre o marido. Você então faz todo um retorno às origens daquele casamento, numa festa na Suécia, setenta anos antes. Como foi a ideia de escrever um livro tão complicado e cheio de pesquisas?

- A única informação que eu tinha era que o castelo foi construído pelo cônsul, e que ele veio por causa de problemas de saúde da mulher. A partir daí você pode criar todas as coisas. Uma das coisas mais importantes da literatura é criar um imaginário social. Aconteceu com a Eurídice, você vê que há pontos de contato com as pessoas. Leitores me escrevem dizendo que se identificam com o livro, então acho que tento criar um universo de onde eu vim, um universo que eu conheço. Ipanema é uma metáfora para na verdade contar o que acontece numa família de classe média, a dinâmica de relacionamento.

- Por que a classe média?

- Não sei quem foi que disse que livros são respostas a outros livros. 1968, do Zuenir Ventura, me marcou pela efervescência. Tem essa festa de ano novo que abre o livro, e toda a elite pensante do Brasil está nessa festa. Isso marcou. Eu faço parte do resto, sabe? Não venho de uma família de intelectuais, meus avós eram imigrantes portugueses, meu pai é engenheiro e minha mãe, advogada. Éramos a família tradicional tijucana, e eu queria saber o que acontecia nos apartamentos enquanto a elite dava as festas. Há a relação com a empregada, que não é só de explorada e explorador, é simbiose, cumplicidade, às vezes até amizade. Todas essas coisas eu queria poder contar. Eu li Ela é carioca, do Ruy Castro, e me apaixonei, assim como Baú de ossos, do Pedro Nava, sobre a genealogia da família dele. Sempre tive isso, de como a gente esquece o nosso passado. Eu tenho muita vontade de contar a história dessas pessoas que já se foram e ninguém mais lembra.

 - Nunca houve um castelo parece fazer uma espécie de romance de deformação da sociedade brasileira ao longo de pouco mais de 100 anos. As particularidades e hipocrisias do brasileiro médio já tinham sido devassados em seu primeiro livro, mas aqui essa característica retorna com muita força. Por quê?

- Pergunta difícil, essa. Os americanos são obcecados por fazer o Grande Romance Americano, que é simplesmente um romance sobre a família americana (toda década tem pelo menos um escritor que ganha o título de autor do Grande Romance Americano). Todos eles falam da deformação da família, ou seja, falam sobre as particularidades, as relações de amor, idiossincrasias, inseguranças, preconceitos. Família feliz não faz literatura.  Então talvez os grandes romances sobre da sociedade de um país, os grandes romances de formação, são os de deformação no sentido de mostrar aquilo que não é perfeito. O que está acontecendo hoje, por que chegamos aqui e da onde vem esse preconceito, essas relações sociais, esses relacionamentos? Nesse sentido, acho que ele tenta ser um romance brasileiro. Essa questão da passagem do tempo, e da percepção de passagem do tempo, é muito forte no livro. Por isso escrevi o romance em duas partes. A primeira vem quase em formato de lenda, enquanto o recente é mais realista. Uma coisa que sempre me incomodou muito é a falta de memória do brasileiro. A ideia era colocar essa memória em um castelo, como um símbolo desse passado, e a partir daí desintegrar esse passado até chegar a um ponto em que hoje em dia as pessoas não sabem se realmente existiu.

- Seus dois romances têm protagonistas bem marcantes. Você só gosta de escrever com mulheres ou...?

- Elas surgiram. A Estela é um pouco o oposto da Eurídice, só quer ser aquilo mesmo, uma mulher casada. A Eurídice, não; a Eurídice quer escapar da opressão. Eu não quero ser conhecida como uma escritora feminista, quero ser conhecida como escritora, ponto, o que na verdade é a grande batalha feminina. Eu queria construir bons personagens para falar e tratar de temáticas variadas, que é o mais importante.

- Nunca houve um castelo passeia por diversos períodos da História brasileira, mas se detém bastante no período da ditadura. Como foi escrever sobre a ditadura?

Martha se ajeita na cadeira e, pela primeira vez, adota uma postura grave.

- Um leitor me escreveu dizendo que tinha gostado do livro, mas se incomodou com a carga política, disse que não aguentava mais falar de política. Há quanto tempo os autores judeus falam do Holocausto? A gente tem que falar de ditadura, sim. Ok, o pessoal não aguenta mais esse papo de política, mas tudo está do jeito que está por causa da ditadura. A história da República brasileira foi feita à revelia da participação popular. Quando a industrialização finalmente ascende a classe média, a ditadura toma o poder e sufoca. A classe média sai da ditadura sendo um povo que não sabe votar. O grande mal da gente foi essa ditadura. Ela cancelou a participação popular de um jeito muito violento.

- O próximo livro também tem essa conotação política, não?

- Vai se chamar Ribalândia. É a história de um coronel no interior do Brasil chamado Ribamar e as arbitrariedades que ele faz no estado inspirado em seu nome, Ribalândia. A casa grande dele é baseada na casa grande do Engenho Noruega, que aparece desenhado no início do livro Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. Estou me divertindo bastante com esse livro, tem muito humor.

- Como é o seu processo criativo?

Martha ri.

- Sentar no computador todos os dias e desligar a internet, escrever muito, escrever pouco, escrever nada e ficar angustiada. Eu só me libero quando tenho que cuidar da casa e ficar com meus filhos. Tem algo muito bom em cuidar da casa porque você sabe o que vai acontecer. Às vezes você tem que escrever mil palavras pra jogar fora, ou então escreve as mil palavras porque sabe que vai jogar fora e virão as mil palavras que vão funcionar – ou só trezentas, ou duzentas. David Carr falava que escrever não é um pensamento, é um músculo. O George Saunders é budista e acredita muito nessa relação entre escrita e subconsciente. Toda escrita pra mim é subconsciente. A minha escrita é caótica porque eu não sei o que vai acontecer. Tem uma cena do Indiana Jones onde ele está num precipício e tem de dar um salto de fé. Escrever é isso. Viver é isso.

Martha suspira e conclui:

- A vida é assim.

***

Mateus Baldi nasceu em 1994. É escritor e roteirista. Fundou a plataforma literária Resenha de Bolso, foi editor de cultura da revista Poleiro e colaborador de literatura no site da Piauí.

Mateus Baldi

Mateus Baldi nasceu em 1994. É escritor e roteirista. Fundou a plataforma literária Resenha de Bolso, foi editor de cultura da revista Poleiro e colaborador de literatura no site da Piauí.

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