Feliz desaniversário! (Parte 3. Final e começo)

25/03/2016

Por Lilia Moritz Schwarcz

maeaninha

Mãe Aninha.

Leia também a primeira e a segunda parte de Feliz desaniversário. 

Essa é a terceira e última parte de nossa celebração de desaniversário, que começou com um post no dia 11 de março de 2016. Já lembramos de alguns nomes de mulheres que se destacaram durante a Colônia, pulamos para o período Imperial e agora chegamos ao Republicano. Desta vez, comemoramos um duplo desaniversário. Em primeiro lugar, pois, conforme ficou combinado, todo dia é dia de aniversário das mulheres. Em segundo, porque mencionamos aqui um período muito maltratado por nossa história do Brasil. Chamada pelo governo Vargas de Velha, a República Velha foi ensanduichada entre dois contextos fortes: o Império, que guardou a imagem do mecenato do imperador Pedro II a despeito da crise do escravismo e do próprio sistema que caía em 1889, e o Estado Varguista, que chamou todas as conquistas para si; sobretudo direitos sociais para os trabalhadores. Por isso, o Estado que então se criava se auto-batizou de “Novo”. No entanto, uma vez que não acredito na inocência dos nomes, e como nada nessa vida vem de graça, fica claro como havia aí uma clara contraposição. Tudo que era “de antigamente” carregou a designação de “velho”, no sentido de antigo e ultrapassado. Já o que começava naquele período surgia como a mais absoluta novidade; por isso Estado Novo, no sentido de inaugural em relação ao futuro, mas também no sentido de ruptura com o passado.

A matéria-prima da História é a mudança, assim como a continuidade, e não se planta uma nova carteira de direitos trabalhistas sem a semeadura dos anos anteriores. Pesquisas vêm mostrando que, se os anos que vão de 1889 a 1930 acabaram por permitir a existência de muitas políticas de exclusão social, esse período foi também palco para todo tipo de reação, revolta e manifestação. E foi nesse contexto que ocorreram as Revoltas da Marinha, da Armada e da Vacina; as insurreições do Contestado e de Canudos, e os muitos modernismos que o Brasil conheceu nesse momento de grande renovação cultural.

A Primeira República serviu, pois, para variadas formas de imaginação social, assim como converteu-se numa grande Babel de Línguas — por conta da acelerada entrada de imigrantes e por causa de uma série de experimentos sociais. Como História também não é só conta de somar, mas traz consigo varias regras de diminuir, esse foi, ao mesmo tempo, um momento de grande inclusão e de forte exclusão social, que incluiu avanços nas teorias raciais — que determinavam raças superiores e inferiores — e de uma república falhada em seus propósitos de cidadania.

E se o período da Primeira República, durante muito tempo, foi pouco mencionado nos nossos compêndios históricos, no caso das mulheres foi ainda mais radical. Poucas são lembradas, e sempre como coadjuvantes, companheiras, parte de grupos maiores ou “boas para o lar”. Com certeza fizeram isso tudo, mas, adaptando a letra de Caetano Veloso na música “Tropicália”, “organizaram o movimento e orientaram o Carnaval”. Foram muito mais do que sombra em meio a dia de sol. Foram também muitas, e nossa lista vai parecendo cada vez mais, apenas e tão somente, uma tentativa exemplar. Daqui para frente, então, os números de nossas protagonistas se multiplicam em progressão geométrica. Essa série de posts de desaniversários termina e só começa por aqui.

PERÍODO DA PRIMEIRA REPÚBLICA

  • Anália Franco (1856-1919) — Nasceu em Resende, no Rio de Janeiro e mudou-se para São Paulo, onde diplomou-se como normalista, aos dezesseis anos, exercendo o cargo de professora primária. Depois trocou seu posto na capital por outro no interior, a fim de socorrer crianças necessitadas. Na época da República, Anália já atuava em dois grandes colégios gratuitos para meninas e meninos. Criou escolas maternais e escolas elementares, além do liceu feminino, com a finalidade de instruir e preparar professoras. Dedicou-se também ao jornalismo e à literatura e fundou a Revista da Associação Feminina.

 

  • Anita Malfati (1889-1963) — Nasceu em São Paulo. Sua mãe era professora de pintura. Incentivada pela família, em 1910, Anita partiu para a Alemanha, onde frequentou por três anos a Academia Real de Berlim. Estudou gravura, desenho e pintura, além de conhecer os principais mestres do expressionismo alemão. De volta ao Brasil, em 1914, realizou sua primeira exposição individual. Foi a seguir para Nova York estudar na Independent School of Art. Anita iniciou uma obra de tendência claramente expressionista, distinta dos padrões acadêmicos vigentes até então no Brasil. Sua exposição em São Paulo, Exposição de Pintura Moderna, realizada no ano de 1917, causou escândalo e gerou críticas ferozes de Monteiro Lobato. Com o tempo a mostra se firmaria como um marco para o modernismo paulista.

 

  • Bertha Lutz (1894-1976) — Nascida em São Paulo, Bertha foi educada na Europa, formou-se em biologia pela Sorbonne e por lá teve contato com a campanha sufragista inglesa. Voltou ao Brasil em 1918 e ingressou como bióloga pesquisadora no Museu Nacional, sendo a segunda mulher a entrar no serviço público brasileiro. Ao lado de outras pioneiras, empenhou-se na luta pelo voto feminino e criou, em 1919, a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Em 1922, Bertha representou as brasileiras na Assembleia-Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, e foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana. Candidata a uma vaga na Assembleia Nacional Constituinte de 1934, a despeito de não conseguir se eleger, obteve a primeira suplência no pleito seguinte e acabou assumindo o mandato de deputada na Câmara Federal em julho de 1936. Como parlamentar, destacou-se com propostas que visavam a mudança na legislação referente ao trabalho da mulher e do menor. Batalhou pela igualdade salarial, a licença de três meses para gestantes e a redução da jornada de trabalho, então de treze horas diárias.

 

  • Bidú Sayão (1906-99) — Balduína de Oliveira Sayão, com dez anos de idade, já declamava, tocava clássicos ao piano e cantava. Estreou como cantora de ópera em 1926 no Teatro Costanzi, o teatro de ópera em Roma. No mesmo ano, inaugurou a temporada lírica no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Atuou ainda no Teatro Colón, em Buenos Aires, no Teatro alla Scala, em Milão, no Teatro Regio di Torino e na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma. Em Paris, fez muito sucesso no Théâtre Nactional de l’Opéra-Comique, do qual tornou-se cantora regular. Em 1935, estreou nos Estados Unidos, no Town Hall de Nova York. Foi então contratada por Arturo Toscanini e passou a integrar a Orquestra Filarmônica de Nova York.

 

  • Hilária Batista de Almeida ou Tia Ciata (1854-1924) — Baiana de Santo Amaro da Purificação, Tia Ciata foi uma famosa quituteira do bairro da Saúde no Rio de Janeiro do final do século XIX. Nos fins de semana, organizava festas na sua casa, reunindo compositores, intelectuais e artistas do cenário carioca. O primeiro samba gravado em disco, “Pelo Telefone”, foi composto na casa dela e foi registrado por Donga.

 

  • Eugênia Anna Santos ou Mãe Aninha (1869-1938) — Filha de africanos, a ialorixá Obá Biyi nasceu em Salvador. Mais conhecida como Mãe Aninha, ela foi instruída no candomblé da Casa do Bambochê, fundado por volta de 1830 e o mais antigo terreiro de origem nagô-queto a funcionar regularmente no Brasil. Saiu de lá para formar uma nova casa, o Ilê Axé Opô Afonjá, hoje considerado Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mãe Aninha sempre lutou pelo culto do candomblé no Brasil, e por seu livre exercício. Por intermédio do ministro Osvaldo Aranha, Mãe Aninha trabalhou pela promulgação do Decreto Presidencial no 1202, no primeiro governo de Getúlio Vargas, pondo fim à proibição aos cultos afro-brasileiros em 1934.

 

  • Maria Gomes de Oliveira ou Maria Bonita (1911-38) — Nasceu 8 de março numa pequena fazenda em Santa Brígida, Bahia. Casou-se aos 15 anos com José Miguel da Silva, sapateiro e conhecido como Zé Neném. Mas o casal vivia às turras. E foi no ano de 1929, quando fugiu para a casa da família, que ela reencontrou Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, um amigo da casa. Maria Bonita foi a primeira mulher a integrar um grupo de cangaceiros. Maria Bonita foi companheira de Lampião por oito anos e morreu junto com ele em 1938. Além de guerreira, ela mudou a estética do grupo com seus bordados e roupas de couro.

 

  • Maria Rosa, a Virgem do Contestado (?-1915) — Líder política e espiritual dos rebeldes da Guerra do Contestado. Assumiu a liderança militar dos revoltosos após a morte do mandante João Maria.

 

  • Nair de Teffé von Hoonholtz (1886-1981) — Filha dos Barões de Teffé, estudou em Nice e em Paris. Em 1909, publicou na revista Fon-Fon! o seu primeiro trabalho como caricaturista. Depois disso trabalhou em periódicos como O Binóculo, A Careta e O Ken. Além da caricatura, atuou como pintora, cantora, pianista e violinista. Casada com o Marechal Hermes da Fonseca, então presidente da República, causou escândalo quando convidou para o palácio de Catete Chiquinha Gonzaga, tendo Nair tocado ao piano o sucesso “Corta jaca”. Confiante, certo dia, numa reunião ministerial presidida pelo marido, apareceu na sala trajando um vestido em cuja roda ostentava caricaturas de todos os ministros de Estado!

 

  • Patrícia Rehder Galvão ou Pagu (1910-62) — Mais conhecida pelo pseudônimo, Pagu nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, jornalista, foi também militante do partido comunista. Destacou-se no movimento modernista paulistano iniciado em 1922. Foi companheira de Oswald de Andrade e durante muito tempo vista apenas como tal: um par. Em 1931, foi presa ao participar de uma greve de estivadores em Santos. Em 1933, saiu do Brasil, deixando o marido e o filho. Volta ao país em 1935, expatriada pela polícia francesa como comunista estrangeira e por conta de identidade falsa. Separa-se de seu marido e é mais uma vez presa pela ditadura de Getúlio, passando cinco anos na cadeia. Anos depois, rompe com o comunismo para aderir ao socialismo. Mas nunca largou a atuação política e cultural.

 

  • Tarsila do Amaral (1886-1973) — Nascida em Capivari, São Paulo, era oriunda de uma família de fazendeiros. Iniciou seus estudos em São Paulo mas logo partiu para a Europa, com o objetivo de conhecer as vanguardas estrangeiras. Seu primeiro casamento foi desfeito por seu marido se opor a seu trabalho artístico. Separa-se então dele e investe em sua formação. Teve contato com várias tendências de vanguarda e aderiu ao modernismo quando voltou ao Brasil, em 1922. Seu quadro Abaporu é ainda hoje considerado um marco do movimento antropofágico nas artes plásticas brasileiras.

 

* Recomendo novamente a leitura do livro Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2000, da onde tirei parte das informações. Agradeço também nessa terceira parte do “post de desaniversário” ao pessoal do Projeto República (UFMG) e a Adriane Piscitelli.

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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP, além de autora de O espetáculo das raçasAs barbas do imperador (vencedor do prêmio Jabuti na categoria ensaio), D. João carioca (em coautoria com Spacca) e O sol do Brasil (vencedor do prêmio Jabuti na categoria biografia), entre outros. Em abril, lançou com Heloisa Starling Brasil: Uma biografia.

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