Itinerante de um Cotovelo

25/04/2018

FOTO: Flickr

Deve ser porque não sirvo para esse mundo. Porque me sinto no exílio: esquisita, judia e mulher. Porque gostava de conversar com um pingo de água que saía da torneira, com o tampo de uma mesa, com o armário de jacarandá. Porque imitava minhas irmãs e fingia ler os livros delas. Ou lia mesmo, sem entender quase nada. Porque inventava línguas, sentada no beiral da janela do quarto dos meus pais. Porque prestava atenção no jeito de eles falarem o português todo errado: "a gulha", "a çougue", "primiera marcha", "volán" e do jeito do meu pai me dizer para não fazer alguma coisa: "no no", sendo o primeiro um "não" e o segundo meu apelido. Porque minha professora de hebraico era excelente e exigente e declaramos guerra uma à outra, o que me fez estudar a língua com mais vontade. Porque meu primeiro namorado era chato, me cobrava muito e eu queria me exibir para ele. Depois que terminamos, fui estudar numa escola progressista, de costumes liberais, com o melhor professor de literatura que já existiu, que ensinava João Cabral e Manuel Bandeira, quando os livros do vestibular eram de Castro Alves e José de Alencar. Porque nessa escola havia a  greve do apito, contra a burocracia e tudo o que considerássemos injusto. Porque eu tinha um outro professor, de biologia, que achava que ensinar era ver o brilho nos olhos dos alunos. E porque fui estudar letras, e logo na primeira semana dei com um professor que comentava contos e poemas, mostrando para nós todo o processo, sem ocultar truques e mostrando as diferenças entre analisar e interpretar. E as professoras de inglês da faculdade eram tão, mas tão caretas, que acabamos brigando e, por ter desistido do inglês, pude estudar russo com o Boris Schnaiderman e a Aurora Bernardini e com eles ler Tchekhov, Khlebnikov e Tinianov. Por ter logo escolhido um pseudônimo para minhas participações em concursos que nunca ganhei, "Itinerante de um Cotovelo". Porque logo comecei a ensinar e isso se revelou a melhor coisa que existe.

E porque eu poderia continuar quase indefinidamente, mas talvez porque não seja por nada disso, mas sim porque sim. Ou porque o tempo não existe, mas só o movimento dos corpos no espaço que, esses sim, passam pelo tempo e vão recebendo marcas, até chegar à degradação final, que só é final para nós, que pensamos o, sobre e no tempo. E porque o tempo não existe, quero negar, inventar e pensar sobre ele, como se fosse possível pará-lo, lembrá-lo e prevê-lo. E porque, nos sonhos, parece que ele existe, que é possível não ser o que sou, ser o que não sou, rir da morte, ser muitas coisas ao mesmo tempo. Porque o amor me constipa. Porque meus pais passaram pela guerra e me contaram e eu lembrei do que não vivi, como costumam ser as histórias. Porque as palavras vêm de outros tempos e lugares e chegam aqui e agora carregadas, dizendo: "oi, tudo bem? pode me hospedar um pouco, estou cansada e sem abrigo". Porque uma história é uma dúvida sobre o tempo, uma freada e uma continuação do fluxo que vem do Adão que não existiu até a Marielle que existiu, passando pelos dinossauros e pelo jogo de amarelinha. Porque vivo num país injusto demais e porque tudo é político, até mesmo a beleza e a feiura, que no fundo são a mesma coisa. Porque perguntar é quase responder e o melhor que se pode fazer é buscar as perguntas certas, porque as coisas doem e, como num alongamento no músculo certo, algumas dores são boas. Porque ser mulher é verdade e mentira, ser mãe atravessa os séculos, ser brasileira coça. E, afinal sem chegar lá - porque lá é onde nunca se chega - por ser um trabalho, um pouco como qualquer outro.  E porque eu gosto.

***

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu "Não está mais aqui quem falou", "Írisz: as orquídeas" e "O que os cegos estão sonhando?", entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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