Lendo "Cidade em chamas"

12/07/2016

Por Carol Bensimon

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Foto: Logan Hicks

A minha maluquice é querer entender demais as coisas. Quando pego um livro para ler, óbvio que uma parte de mim está andando com a história, vivendo aquele lance que a gente chama de suspensão da descrença, mas outra certamente fica pensando em como é que a ficção está conseguindo tirar (ou não tirar) aquilo de mim; como é que, em resumo, a ficção está me deixando naquele estadinho emocional constrangedor. Normalmente dá pra entender o funcionamento de algumas engrenagens, porque a gente treina bastante para isso. Mas há mistérios insolúveis, lindos mistérios. Recentemente, os contos de Alice Munro. Eu não conseguiria nem falar sobre esses contos se quisesse, e a sensação de que eu perdi alguma coisa parece proporcional à minha atração por eles. Não dá para entender.

Cidade em chamas. Melhor não citar os fatos que costumam começar qualquer resenha ou matéria sobre o livro-de-mais-de-mil-páginas do norte-americano Garth Risk Hallberg. Eles não têm nada a ver com o romance de fato. São fofocas literárias e movimentos de mercado editorial. Estou na metade do livro, portanto leve isso em consideração se quiser, o fato de que ainda não terminei a leitura e estou me metendo a falar sobre ele sem ter lido, por exemplo, a parte que se passa durante o grande blecaute de 1977 em Nova York, uma das cenas mais impressionantes do romance de Hallberg, segundo dizem. Mas acho que vai ficar tudo bem. Minhas considerações têm mais a ver com linguagem do que propriamente com trama.

Aquele prólogo já deixava claro que vinha coisa boa. Pra mim, quer dizer. Eu me sinto muito seduzida por coisas do tipo apesar de ela [a geladeira] só conter uma barra mesozoica de manteiga que o pessoal que está me hospedando deixou para trás quando se mandou para a praia (…). A barra mesozoica de manteiga me pegou. Há um certo ritmo que também me pega. E coisas como: As sirenes e os ruídos do trânsito e dos rádios flutuam vindo das avenidas como lembranças de sirenes e ruídos de trânsito e de rádios. Por trás das janelas de outros apartamentos, TVs estão sendo ligadas, mas ninguém se dá ao trabalho de baixar as persianas. Dá para estar lá dentro, naquela Nova York dos setenta, com muita facilidade.

De fato, meu livro já está todo sublinhado. Há imagens muito bonitas, que vão do “cigarro fantasma” (o cigarro que vai virando cinza sem ninguém bater a porcaria do cigarro) a uma descrição detalhada de cheiros: Sam ainda lembrava do cheiro da mãe quando ela voltava ao sofá, chocolate em pó e marshmallow derretido, sim, mas também uma intrincada coisa meio florestal que dizia Califórnia, de onde ela tão improvavelmente viera. Por algum motivo, no entanto, a mesma coisa que me fascina acaba me parecendo um pouco cansativa.

E não é só uma questão de cansaço, mas de ter a impressão de que eu não estou entrando no tal do estadinho emocional constrangedor. Talvez o acúmulo de imagens espertas crie um efeito indesejável de distanciamento. Esperteza, aliás, é uma palavra bem adequada aqui; Cidade em chamas exala um tipo de inteligência malandra que, com frequência, deságua em um sorrisinho de canto de boca. É possível que isso tenha uma relação com os tais andaimes que Zadie Smith menciona em um de seus ensaios sobre escrever um romance, os andaimes necessários no processo, mas dos quais o escritor deve se livrar depois. Embora ela esteja falando provavelmente de montagem da trama, não parece ruim supor que o excesso de imagens-nunca-pensadas-antes acabe chamando muita atenção sobre si mesmo (como andaimes?), me jogando para fora da história. É claro que eu não quero propôr uma discussão forma x conteúdo aqui. Só estou tentando entender uma sensação de leitura.

Eu diria que a questão de fundo é a seguinte: há no narrador de Hallberg um palpável medo de se levar a sério. Talvez esse seja o medo de toda uma geração (a minha). Opiniões sobre isso, ou sobre qualquer aspecto de Cidade em chamas, são muito bem-vindas.

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Carol Bensimon

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