Ler e escrever

04/10/2017

Consulta #1: Víctor

O que fazer quando você começa a ler um livro e percebe que não exatamente tudo, mas algumas coisas são muito parecidas ao que se está escrevendo no momento e que até então acreditava ser original:

1) Entrar em depressão.

2) Começar a reescrever para se afastar do autor lido.

3) Ignorar e continuar a escrever, porque tudo que tinha para ser escrito já foi contado, e o que importa é a maneira como se narra a história.

Caro Víctor,

Decidi escolher sua consulta porque o que você descreve é um fenômeno que acontece com frequência e acho que refletir sobre isso pode ser de utilidade não só para mim ou para você. Gostaria de começar com uma anedota.

Em 2011 eu estava tentando escrever meu segundo romance. Para falar a verdade, eu estava tentando escrevê-lo desde meados de 2009, mas ainda não tinha encontrado o romance que estava procurando. Havia passado já por várias versões, ou seja: já havia abandonado vários inícios e voltado a começar de novo. Naquele momento, não lembro exatamente da data, mas deve ter sido no mês de fevereiro ou março, eu estava trabalhando num enredo em que o presidente do México era assassinado e substituído por um sósia. Obviamente a ideia não era original, mas eu pretendia levá-la ao absurdo: logo o sósia seria assassinado também e substituído por outro dublê, então o dublê seria assassinado e substituído, e assim até o infinito – ou, pelo menos, até o final do romance.

Eu estava gostando do resultado, porém um dia peguei das minhas prateleiras um romance colombiano. Tres ataúdes blancos. O autor se chama Antonio Ungar. Já desde as primeiras páginas percebi que o tom do narrador era parecido com o que eu estava usando. Isso começou a me incomodar, porque senti que a leitura poderia “contaminar” minha escrita. O ritmo e a sintaxe gostam de grudar, viram uma musiquinha que depois é difícil tirar da cabeça. Mas o romance era muito bom e eu decidi continuar um pouco mais, até que cheguei no ponto em que o presidente da Colômbia era assassinado e substituído por um sósia.

Parei de ler, lógico. E assim que coloquei de volta a porra do livro na prateleira: 1) Entrei em depressão e 2) Larguei mentalmente, quer dizer, abandonei para sempre, o romance que eu estava escrevendo. Não foi uma birra: havia coincidências demais. A ideia inicial do enredo. O tom humorístico do narrador. A perspectiva. E até a editora. Pensei, e ainda acho que isso teria acontecido de verdade, que meu editor não ia aceitar publicar na mesma coleção um romance parecido, inclusive se, no final, resultavam muito distintos. Os romances poderiam ser diferentes de um ponto de vista literário, mas continuariam sendo parecidos da perspectiva editorial.

Aquela experiência me traumatizou e parei de ler ficção de escritores contemporâneos latino-americanos por quase um ano, até que consegui terminar de escrever Se vivêssemos em um lugar normal, no começo de 2012. Como escritor, a estratégia funcionou. Como leitor, foi uma desgraça.

Aquela experiência também me traumatizou.

Conheço escritores que falam que para eles é impossível ler ficção enquanto escrevem um romance. Escritores que acreditam que a solução é ler ensaio, poesia ou um tipo de ficção muito alheia ao que estão escrevendo. O problema é que escrever um romance exige muito tempo – meses, anos – e o sacrifício do escritor, enquanto leitor, pode ser insuportável. Ficar sem o prazer de ler ficção é uma solução própria de neuróticos.

Na escrita de meus dois romances seguintes, acho que consegui uma solução intermediária: li muita ficção mexicana, latino-americana, ou, para ser exatos, reli muitos dos meus livros favoritos da tradição literária mexicana e latino-americana. Esses dois romances estiveram em grande medida inspirados por aquelas leituras. Falo que é uma solução intermediária porque é verdade que fiquei sem ler novidades, mas não renunciei à experiência da leitura da ficção que eu gosto.

Eu acredito que hoje em dia não há lugar para uma literatura ingênua. O romancista tem que conhecer muito bem a tradição literária e se manter em dia com as novidades. O pior pecado do romancista atual é acreditar que está fazendo algo novo e acabar repetindo o que já foi dito muitas vezes. Mas também é verdade, Víctor, como você colocou, que tudo que tinha para ser escrito já foi contado, e o que importa é a maneira como se narra a história. Essa maneira, Víctor, será só sua se você conseguir ser honesto com você mesmo ao escrever, se procurar sua voz, se encontrar o tom narrativo que mora em algum lugar de sua cabeça, de suas mãos, de seu fígado e de sua pele. Boa sorte.

Revisão: Andreia Moroni

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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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