Lincoln no limbo, uma apresentação

03/04/2018

Por Jorio Dauster

Em 1981, com 23 anos de idade, George Saunders formou-se em engenharia geofísica e pouco depois foi trabalhar num poço de petróleo no interior da ilha de Sumatra, a quarenta minutos de helicóptero da cidade mais próxima. Como a cada quatro semanas de trabalho tinha direito a duas de descanso, Saunders dividia seu tempo livre entre uma montanha de livros e mergulhos num rio poluído com as fezes de centenas de macacos.  

O programa intensivo de leituras certamente contribuiu para seu amadurecimento como escritor, pois foi então que se familiarizou com as obras de Kurt Vonnegut, em especial Matadouro 5, cuja influência em seu estilo é reconhecida abertamente. Já as atividades natatórias lhe valeram uma enfermidade que o obrigou a voltar aos Estados Unidos, encerrando sua carreira na indústria petrolífera e o levando a exercer uma série de atividades humildes, de porteiro a empregado de… matadouro!

Em 1986, Saunders enfim toma o rumo certo ao se inscrever no programa de mestrado em escrita criativa da Universidade de Syracuse, onde se formou dois anos depois. Ali conheceu sua futura mulher, Paula Redick, e as coisas andaram bem depressa: noivado em três semanas, Paula engravidando durante a lua de mel, primeira filha em 1988 e a segunda em 1990. Na maior penúria financeira, Saunders trabalhou então como redator técnico para uma empresa farmacêutica e mais tarde para uma companhia de engenharia ambiental até 1995, aproveitando as horas vagas no escritório para escrever alguns livros abortados e os primeiros contos publicados em revistas renomadas, inclusive a New Yorker em 1992. A primeira coletânea — CivilWarLand in Bad Decline — apareceu em 1996, quando se tornou professor no programa de escrita criativa em que se formara (função que exerce até hoje).

De lá para cá, foram publicadas outras três coletâneas de contos — Pastoralia (2000), In Persuasion Nation (2006) e Dez de dezembro (2013), além de ensaios, livros infantis e relatos de viagem, tendo Saunders recebido inúmeros prêmios literários. Para muitos críticos e colegas escritores, ele é hoje o maior contista norte-americano em atividade graças ao estilo original que combina uma visão irônica da vida sob o capitalismo com reflexões morais e filosóficas acerca de temas de grande atualidade.

Usando com frequência parques temáticos como cenário de suas histórias, Saunders acentua a vulnerabilidade dos seres humanos diante do poder esmagador das corporações e das burocracias, embora sempre buscando um elemento de redenção, mesmo que inalcançável. Com pitadas de humor e surrealismo, o resultado é sempre surpreendente, quando não perturbador, e justifica a fama cada vez maior do autor.

Lincoln no limbo

FOTO: Kelli Dougal / Unsplash

Eis que, no ano passado, já quase um sessentão, Saunders publica seu primeiro romance, Lincoln in the Bardo. A ideia para o livro, segundo o autor, surgiu quando um amigo lhe disse que “os jornais da época relataram que Lincoln voltara várias vezes ao mausoléu para ter nos braços o corpo de seu filho. Tão logo ouvi isso, uma imagem brotou em minha mente: uma mescla do Lincoln Memorial com a Pietà”.

Willie morreu aos onze anos de idade no dia 20 de fevereiro de 1862, aparentemente de febre tifoide, quando Abraham Lincoln era presidente e o país estava engolfado na trágica Guerra Civil havia pouco menos de um ano.

Passou-se muito tempo até que essa poderosa imagem encontrasse sua expressão literária, para o que terão contribuído os estudos de Saunders sobre a tradição nyingma do budismo tibetano, de onde trouxe o conceito de “bardo” que consta do título em inglês. Simplificadamente, trata-se de um estado de existência intermediário entre duas vidas na terra durante o qual a consciência de cada indivíduo não está conectada a um corpo físico, deixando a alma sujeita a vários fenômenos (inclusive terríveis alucinações que podem conduzir a uma reencarnação pouco recomendável).

A partir dessas impressões e conceitos, Saunders montou no cemitério de Oak Hill, onde o menino Willie Lincoln foi enterrado, uma comovente história de amor filial em que está posta a questão fundamental de amar alguém quando confrontado com a inevitabilidade da perda. Mas o verdadeiro coro grego propiciado pelas vozes de dezenas de “espíritos” fornece também um panorama mais amplo das angústias humanas, inclusive dos negros então escravizados nos Estados Unidos.

Valendo-se de citações dos relatos de testemunhas históricas (algumas inventadas), Saunders faz um impressionante retrato do físico e da psique do décimo sexto presidente norte-americano no momento angustioso em que ele precisa lidar ao mesmo tempo com a morte do filho amado e dos milhares de jovens tombados na Guerra Civil que ele se vê obrigado a conduzir implacavelmente.

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Jorio Dauster é um dos maiores tradutores do país. Nascido em 1937, entrou para o Serviço Diplomático em 1961. Foi embaixador junto à União Europeia de 1991 a 1999 e presidente da Vale do Rio Doce de 1999 a 2001. Foi membro do Conselho do Global Crop Diversity Trust (Roma), presidente do Conselho de Administração da Ferrous Resources do Brasil e compositor de sambas e marchinhas. Traduziu as principais obras de J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, Ian McEwan e Philip Roth. Lincoln no limbo, de George Saunders, é seu mais recente trabalho como tradutor.

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