Lucia Berlin — Quando a história precisa ser ela mesma

06/06/2017

Por João Lourenço

Na citação escrita no anuário do ensino médio de Lucia Berlin lê-se o seguinte: “Deixe-me contar a minha aventura”. Filha de um engenheiro de mineração, a aventura de Lucia começa em 1936, em Juneau, capital do Alaska. Foi lá que ela passou os primeiros anos da infância. Após seu pai voltar da Segunda Guerra Mundial, a família se muda para Santiago, no Chile, onde Lucia vive cercada por chefes de estado e festas glamurosas.

Quando completa 19 anos, ela volta aos EUA e estuda literatura com o romancista Ramon Sender. As décadas seguintes são marcadas por fracassos amorosos — foram três casamentos e quatro filhos —, passagens por diversos empregos (telefonista, diarista, assistente de médico etc.) e uma luta permanente contra o alcoolismo. 

Embora tenha publicado contos esparsos em revistas literárias, como The Noble Savage, publicação comandada por Saul Bellow, Lucia começa a escrever para valer apenas em meados da década de 1970, quando se estabelece na área da baía de São Francisco. A primeira coletânea de contos, Angel’s Laundromat, é publicada em 1981. Logo ela conquista muitos admiradores na Costa Oeste americana, mas não o suficiente para chamar a atenção das grandes editoras de Nova York. Por anos, Lucia foi nome elogiado nos círculos literários. Lydia Davis, por exemplo, fez de tudo para disseminar o trabalho da escritora entre o grande público.

No total, Lucia escreveu 76 contos. A maioria publicada agora em Manual da faxineira, sucesso de público e crítica. Hoje, costumam comparar Lucia a nomes como Raymond Carver e Denis Johnson. Entendo, mas não concordo com tais comparações. Sim, além de compartilhar os problemas relacionados ao alcoolismo, ela e esses autores tinham muito para dizer sobre os excluídos (pessoas à margem, frágeis, dependentes de drogas, pobres, carentes, excêntricos). A diferença é que, ao contrário de Carver e Johnson, os narradores das histórias de Lucia são, na maioria, mulheres. Além disso, ela não tinha a mesma preocupação estética de quase todos os outros autores da época. E talvez isso seja uma de suas grandes qualidades.

Lucia Berlin é um sopro de renovação, mas não no sentido de criar "malabarismos linguísticos". Em uma época em que a short story estava passando por um momento de transição, em que o formato começava a ser ensinado em quase todas as faculdades americanas, Lucia nunca esteve muito preocupada com formalismos. Quando você lê uma de suas histórias, logo percebe que ela não tentava agradar ninguém. Não há ritmos ou sentenças perfeitas em sua narrativa, como não há ritmos ou sentenças perfeitas na vida real. Lucia nos remete a uma voz familiar, como a de um amigo que passa um longo período longe e volta para relatar as últimas experiências. Apesar de narrar histórias sofridas (o trauma de um aborto ou o abuso sexual entre familiares), a voz de Lucia apresenta a história com sensibilidade e humor — no caso, humor que não é carregado de ironia barata ou agressividade.

É como se ela sentisse compaixão pelos personagens. Não há julgamento, apenas observação de personagens que passaram pela vida da autora. Em uma entrevista, ela cita o poeta William Carlos Williams como inspiração: “Ele escrevia de forma simples e clara. E talvez o maior desafio para mim é escrever sobre a vida real como ela se apresenta para nós, sem embelezar as coisas, sem tentar ser romântica ou engraçada, mas deixar a história ser ela mesma”. Além de William Carlos Williams, autores como Murakami, Tchékhov e Lydia Davis figuram entre os favoritos da autora.

A narrativa de Lucia me leva a questionar: o bom contador de histórias é necessariamente aquele que, assim como a escritora, transita por uma vida marcada por eventos e experiências curiosos? Caso ela tivesse levado uma vida pacata, sem grandes acontecimentos, o universo fictício da autora ainda assim teria o mesmo peso, as mesmas cores? Enfim, uma vida absurda oferece mais possibilidade/autenticidade para o narrador?

Lucia não enxergava a literatura como terapia. Escrever sobre experiências e pessoas próximas tinha a ver com clareza emocional. “Escrevo apenas para consertar um tempo ou um evento na minha cabeça, para tornar isso aceitável na minha cabeça”. A genialidade dos contos da autora está na simplicidade em narrar o peso e a banalidade do cotidiano. Ela não está interessada em super-heróis ou cenas posadas.

Os contos de Manual da faxineira remetem às fotografias de Vivian Meier e Diane Arbus — que também levaram vidas peculiares. As lentes das fotógrafas ajudam a ilustrar o universo literário de Lucia. É aquela mistura entre o belo e o bizarro, os "extras" dos bastidores da vida, em lugares desconhecidos, sombrios, de difícil acesso, mas, quando acessamos, não queremos mais sair. Lucia trouxe humanidade para tudo aquilo que passa despercebido na correria das horas.

Como se soubesse a hora de sair de cena, Lucia Berlin morreu no dia de seu aniversário, 12 de novembro, aos 68 anos.

Após terminar Manual da faxineira, corri para procurar imagens da autora. Ao contrário do que imaginava, ela não carrega um olhar pesado ou distante. O retrato oferece a imagem de uma mulher elegante, sempre muito bem maquiada. O olhar é de quem já viu muita coisa, mas há uma leveza, um toque de mistério e esperança, como o de alguém que ainda está curioso em relação à vida.

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João Lourenço é editor at large da revista semestral *ffwMAG* e escreve sobre cinema, literatura, música e comportamento para publicações como Harper’s BazaarABD Conceitual. Atualmente, ele planeja lançar uma revista literária independente nos EUA e está terminando de escrever uma coletânea de contos.

 

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