O discurso de Bob Dylan

12/12/2016

Bob Dylan e Patti Smith em 1975. Foto: Ken Regan/Ormond Yard Press

No último sábado, dia 10, aconteceu a cerimônia de entrega do Nobel 2016. Impossibilitado de ir ao evento, Bob Dylan enviou à Academia Sueca seu discurso de agradecimento pelo Nobel de Literatura e a cantora Patti Smith, autora dos livros Só garotos Linha M, fez uma apresentação emocionada da canção "A Hard Rain's A-Gonna Fall", lançada em 1963.

Caetano Galindo, que está traduzindo as letras de Dylan para os dois volumes que serão lançados em 2017 pela Companhia das Letras, adiantou para o Blog a tradução da canção interpretada por Patti Smith, em uma versão ainda não finalizada, e também o discurso de Bob Dylan lido durante a cerimônia. Confira a seguir. 

* * *

Boa noite a todo mundo. Eu estendo minhas mais calorosas saudações aos membros da Academia Sueca e a todos os outros convidados e convidadas de distinção presentes na noite de hoje.

Sinto muito não poder estar pessoalmente com vocês, mas, por favor, saibam que absolutamente estou com vocês em espírito, e que fico honrado de receber um prêmio de tamanho prestígio. Receber o Prêmio Nobel de Literatura é algo que eu nunca teria podido imaginar, nem prever. Desde muito jovem me é familiar a experiência de ler e absorver as obras daqueles que foram considerados à altura desta distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway. Sempre me causaram profunda impressão esses gigantes da literatura cuja obra é tema de aulas, fica abrigada em bibliotecas de todo o mundo e é mencionada com palavras de reverência. O fato de eu agora me juntar aos nomes dessa lista me deixa definitivamente sem palavras.

Não sei se esses homens e mulheres um dia pensaram na honra do Nobel como algo que pudesse lhes caber, mas imagino que qualquer um que escreva um livro, ou um poema, ou uma peça de teatro em qualquer lugar do mundo pode acalantar esse sonho secreto, bem no fundo. Provavelmente enterrado tão fundo que eles nem sabem que está ali.

Se um dia alguém me dissesse que eu tinha a mais remota chance de ganhar o Prêmio Nobel, eu seria obrigado a pensar que teria mais ou menos a mesma chance de pisar na lua. A bem da verdade, durante o ano em que eu nasci e por alguns anos ainda não houve ninguém no mundo que fosse considerado digno de receber este Prêmio Nobel. Então, reconheço que estou de fato na mais rara das companhias, para dizer o mínimo.

Eu estava em turnê quando recebi essa notícia surpreendente, e levei mais do que uns poucos minutos para assimilar adequadamente a ideia. Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Imagino que ele se considerasse um dramaturgo. A ideia de que estivesse escrevendo literatura não podia ter lhe passado pela cabeça. Suas palavras eram escritas para o palco. Destinadas a ser pronunciadas, e não lidas. Quando estava escrevendo Hamlet, tenho certeza que ele estava pensando em muitas coisas diferentes: “Quem são os atores certos para esses papéis?” “Como isso aqui deveria ser encenado?” “Será que é a melhor ideia ambientar a peça na Dinamarca?” Sua visão criativa e suas ambições sem sombra de dúvida estavam no primeiro plano em sua mente, mas havia também questões mais prosaicas que ele devia considerar e resolver. “O financiamento está encaminhado?” “Vai haver poltronas boas para todos os mecenas?” “Onde é que eu vou arranjar uma caveira humana?” Eu seria capaz de apostar que a questão mais afastada da mente de Shakespeare era “Isso é literatura?”.

Quando comecei a escrever canções, na minha adolescência, e mesmo quando comecei a ter algum renome por causa da minha capacidade, minhas aspirações para essas canções só iam até aí. Eu achava que elas podiam ser ouvidas em cafés ou em bares, talvez em lugares como o Carnegie Hall, o London Palladium. Se estivesse sonhando bem alto, talvez pudesse imaginar que ia conseguir gravar um disco e aí ouvir minhas músicas no rádio. Era esse o grande prêmio que eu tinha mente. Gravar discos e ouvir suas próprias músicas no rádio queria dizer que você estava chegando a um grande público e que não precisava parar de fazer o que tinha decidido fazer.

Bom, eu venho fazendo o que decidi fazer já há bastante tempo. Gravei dezenas de discos e fiz milhares de shows no mundo todo. Mas as minhas canções é que são o centro vital de quase tudo que eu faço. Parece que elas encontraram um lugar na vida de muita gente de muitas culturas diferentes e sou grato por isso.

Mas tem uma coisa que eu preciso dizer. Como artista eu já toquei para 50.000 pessoas e já toquei para 50 pessoas e posso dizer a vocês que é mais difícil tocar para 50. Cinquenta mil pessoas têm uma só persona, o que não acontece com 50. Cada pessoa tem uma identidade separada, individual, um mundo todo seu. Elas podem perceber tudo com mais clareza. Sua honestidade e como ela se relaciona com a extensão do seu talento entram em julgamento. O fato de que o comitê do Nobel é tão pequeno não é algo que tenha passado despercebido para mim.

Mas, como Shakespeare, eu normalmente estou ocupado demais lidando com meus projetos criativos e tratando de todos os aspectos das questões prosaicas da vida. “Quem são os melhores músicos para essas canções?” “Será que estou gravando no estúdio certo?” “Será que essa música está no tom certo?” Certas coisas não mudam nunca, nem em 400 anos.

Nem uma única vez eu tive tempo de me perguntar, “Será que as minhas canções são literatura?”.

Então, agradeço realmente à Academia Sueca, tanto por ter parado para considerar precisamente essa questão quanto por oferecer, afinal, uma resposta tão maravilhosa.

Tudo de bom a cada um de vocês

 

Bob Dylan

Uma chuva pesada vai cair

Ah, por onde você andou, meu filho de olhos azuis?
Ah, por onde você andou, meu menino querido?
Eu caí pela encosta de doze montanhas cobertas de névoa
Andei e rastejei por seis estradas todas tortas
Pisei bem no centro de sete tristes florestas
Estive diante de uma dúzia de oceanos mortos
Estive por dez mil milhas na boca de um cemitério
E é pesada, e é pesada, é pesada, e é pesada
E é uma chuva pesada que vai cair

Ah, o que foi que você viu, meu filho de olhos azuis?
Ah, o que foi que você viu, meu menino querido?
Vi um recém-nascido cercado de lobos selvagens
Vi uma estrada de diamantes sem ninguém mais ali
Vi um ramo negro de sangue que não parava de pingar
Vi uma sala cheia de homens com seus martelos sangrando
Vi uma escada branca toda coberta de água
Vi dez mil falantes cujas línguas estavam partidas
Vi armas e vi espadas cortantes nas mãos das crianças
E é pesada, e é pesada, é pesada, e é pesada
E é uma chuva pesada que vai cair

E o que foi que você ouviu, meu filho de olhos azuis?
E o que foi que você ouviu, meu menino querido?
Ouvi o som do trovão, que troava um aviso
Ouvi o troar de uma onda que podia afogar o mundo todo
Ouvi mil homens com tambores e de mãos já em chamas
Ouvi dez mil sussurrando e ninguém escutando
Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muita gente rindo
Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta
Ouvi o som de um palhaço que chorava ali no beco
E é pesada, e é pesada, é pesada, e é pesada
E é uma chuva pesada que vai cair

Ah, que foi que você encontrou, meu filho de olhos azuis?
Quem foi que você encontrou, meu menino querido?
Encontrei uma criança ao lado de um potro morto
Encontrei um branco puxando um cavalo negro
Encontrei uma moça cujo corpo ardia em chamas
Encontrei uma menina, que me deu um arco-íris
Encontrei um homem que foi ferido no amor
Encontrei um outro homem que foi ferido pelo ódio
E é pesada, e é pesada, é pesada, e é pesada
E é uma chuva pesada que vai cair

Ah, o que é que você sabe, meu filho de olhos azuis?
Ah, o que é que você sabe, meu menino querido?
Eu vou sair de novo antes de a chuva começar a cair
Vou andar até o profundo da mais funda das florestas negras
Onde as pessoas são muitas e suas mãos vão vazias
Onde os grânulos de veneno inundam suas águas
Onde o lar no vale encontra a úmida prisão imunda
Onde o rosto do carrasco está sempre bem oculto
Onde é feia a fome, onde as almas são largadas
Onde negra é a cor, onde nada é o número
E vou contar e pensar e dizer e respirar isso tudo
E refletir lá da montanha pra todas as almas enxergarem
Então vou me pôr de pé no mar até que comece a afundar
Mas vou saber minha canção antes que comece a cantar
E é pesada, e é pesada, é pesada, e é pesada
E é uma chuva pesada que vai cair

* * *

O primeiro volume das letras de Bob Dylan será lançado em março de 2017. 

 

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