Acaba de chegar às livrarias brasileiras O gene, novo livro de Siddhartha Mukherjee, autor que ganhou o Pulitzer com O imperador de todos os males. Numa abordagem íntima, Mukherjee conta neste livro a história do gene humano, da sua descoberta ao futuro da genética. Para você conhecer melhor O gene, escolhido pela Amazon como o melhor livro de ciência de 2016, traduzimos esta resenha escrita por James Gleick, autor de A informação (Companhia das Letras, 2013), publicado em maio no The New York Times (tradução de Carlos Alberto Bárbaro). Confira.
* * *
Antes mesmo da história humana ter início, as pessoas admitiam que os pais transmitiam algo — pode chamar de “semelhança” — aos filhos, e os filhos aos seus filhos e assim sucessivamente gerações a fio. Mas, como?
No século VI a.C., Pitágoras aventou que o sêmen masculino levasse a informação para o interior dos corpos femininos, cabendo a estes nutri-lo. Duzentos anos depois, notando que alguns gregos pareciam-se com suas mães e suas avós, Aristóteles sugeriu que tanto os homens quanto as mulheres carregavam consigo suas semelhanças, no sangue. (Ainda hoje falamos em linhagens e parentesco consanguíneo.) Aristóteles disse, com exatidão, que as criaturas deviam passar aos outros não apenas a matéria, como a madeira pra um carpinteiro, mas a mensagem: “a aparência e a forma”.
Nos dois milênios seguintes, não se soube muito mais. Ao publicar Sobre a origem das espécies por meio da Seleção Natural, em 1859, Charles Darwin manifestou a incômoda constatação de que toda a sua teoria da evolução se apoiava sobre um alicerce que não se podia ver. Uma teoria da hereditariedade ainda estava por surgir.
Em 1883, o biólogo alemão August Weismann cortou as caudas de doze camundongos, sete fêmeas e cinco machos. Os seus descendentes iriam ou não ter caudas? Se isso parece óbvio para nós, ninguém sabia ao certo até então. Antes de encerrar o trabalho, Weismann cortou 901 caudas de cinco gerações de camundongos. Não nasceu nenhum sem cauda. É assim que a ciência avança.
A hereditariedade era a “ciência perdida”, observou o sempre presciente H. G. Wells na virada do século XIX para o século XX: “Essa mina não explorada de conhecimento, na fronteira da biologia e da antropologia, que, para todos os efeitos práticos, é tão inexplorada agora como nos dias de Platão, é na verdade dez vezes mais importante para a humanidade do que toda a química e a física, do que toda a ciência técnica e industrial que já foi ou virá a ser descoberta”.
Essa ciência perdida é a que conhecemos hoje como genética. E a sua elusiva partícula fundamental, a unidade essencial da informação biológica, chamamos gene. Era preciso primeiro ter sido inventada a ideia do gene. A seguir, a entidade física, presente em cada célula de nossos corpos, em cada coisa viva, precisou ser descoberta. A história dessa invenção e dessa descoberta já foi contada de diversos modos, mas nunca antes com a abrangência e a grandiosidade que Siddhartha Mukherjee confere a essa sua nova história, O gene. Ele justifica plenamente a alegação de que é “uma das ideias mais poderosas e perigosas da história da ciência”.
Como já havia feito em O imperador de todos os males, sua história do câncer premiada com o Pulitzer, Mukherjee encara o seu tema de modo panóptico, de uma grande e esclarecedora distância, e ao mesmo tempo de uma proximidade íntima. Pavimentando sua história há porções da história de sua própria família. Seu primo e dois de seus tios “sofriam de variados descaminhos da mente”, e o espectro da doença mental, presumivelmente hereditário ou transmissível, assombra sua família e sua imaginação. Os livros formam um par magnífico. O imperador de todos os males é, como nota Mukherjee, a história do código genético corrompido, naufragando na malignidade. O novo livro, assim, lhe serve de introdução.
“Nada no mundo natural sugere a existência de um gene”, ele escreve. “Na verdade, é preciso fazer contorcionismos experimentais bem bizarros para chegar à ideia de partículas distintas de hereditariedade.” O homem que realizou esses contorcionismos bizarros foi o monge Gregor Mendel, interno de uma abadia em Brno, no império Austro-Húngaro (atual República Tcheca). A abadia tinha um jardim de cinco acres. Proibido pelo abade de fazer experimentos com camundongos, Mendel começou a cultivar ervilhas. E não se limitou a plantá-las; produziu híbridos, cruzando plantas altas com plantas baixas, flores brancas com flores roxas, vagens lisas com vagens enrugadas.
“Ele começou a discernir padrões nos dados: constâncias não preditas, proporções conservadas, ritmos númericos”, escreve Mukherjee. “Enfim ele ganhara acesso à lógica interna da hereditariedade.” Após pacientes quase oito anos, em 1865, Mendel escreveu um artigo, que leu para um salão repleto de fazendeiros e botânicos em Brno e publicou no anuário “Procedimentos da Sociedade de Ciência Natural de Brno”. E então... Nada. A história da ciência é uma teia emaranhada, não um arco lógico, e por quatro décadas o trabalho pioneiro de Mendel, “o estudo que fundou a biologia moderna”, como o descreve Mukherjee com um leve toque de hipérbole, desapareceu de fato.
A fundação da moderna biologia teria que aguardar até a virada do século retrasado. O artigo esquecido de Mendel foi descoberto por biólogos em Amsterdam, Cambridge e por toda parte. Mendel havia descoberto a unidade básica da hereditariedade, tinha provado que teria que haver essa tal unidade, e finalmente um botânico holandês, Wilhelm Johannsen, deu-lhe um nome: “gene”, ele sugeriu — “uma palavrinha muito aplicável”.
O que é o gene? No início era uma abstração, um enigma, “um fantasma a espreitar na máquina biológica”, como escreve Mukherjee. Por definição, o gene era o portador de toda característica que seja hereditária, total ou parcialmente. Pode-se dizer que há genes para as cores dos olhos, para o peso e até para a inteligência. Algumas características, porém, são mais bem definidas que outras. As pessoas vêm cruzando cachorros há tempos, por exemplo, para obter cães “de pelo curto, de pelo longo, malhados, pintalgados, de pernas arqueadas, pelados, de cauda curta, ferozes, mansos, obedientes, cautelosos, briguentos”.
No século XX, novas tecnologias e novas disciplinas passaram a abordar essa ideia abstrata e hipotética cada vez mais de perto. A epifania se realizou pela descoberta, por James Watson, Francis Crick e Rosalind Franklin, de uma forma vividamente física, a famosa dupla hélice, os pares enrolados básicos do dna. Genes são dispostos ao longo de cromossomos como contas em rosários (a metáfora mais comum). Os cientistas os isolaram e contaram: entre vinte e um mil e vinte e três mil são necessários para fazer um ser humano.
O gene é uma mensagem, uma instrução para fazer uma proteína. Pode ser um diagrama contendo o design para uma estrutura, ou, mais precisamente, como foi sugerido por Richard Dawkins, uma receita descrevendo um processo. O genoma é um algoritmo e, ao mesmo tempo, um código, que deve ser decifrado à custa de muito trabalho e engenho. Um gene é uma mensagem que constrói uma proteína, que cria forma e função, que regula o gene.
Mukherjee monta sua história não de modo cronológico, mas temático, algo necessário. A ciência raramente progride em uma ordem perfeitamente linear mesmo, mas a genética, particularmente, abrange e influencia muitos campos simultaneamente: biologia, ciência da informação e até mesmo a psiquiatria. A genética também desempenhou um papel nos eventos mais sombrios da história do século XX. Basta apenas lembrar que a genética nazista é um assunto à parte, que visava o aperfeiçoamento dos Übermenschen pela eliminação dos fracos e “degenerados”. Mas o impulso social para a eugenia começou mais cedo, na Inglaterra e nos Estados Unidos. E não faz muito tempo, presenciamos debates carregados de um entendimento paupérrimo de noções de raça. Nos anos 1980, James Q. Wilson e Richard Herrnstein ligaram a violência criminosa a “genes ruins” em seu Crime e natureza humana. Herrnstein voltou à carga nos anos 1990, com o incendiário A curva do sino, escrito em parceria com Charles Murray, em que afirmava que brancos e asiáticos possuíam uma vantagem genética sobre os povos de descendência africana no que respeitava à “capacidade intelectual”.
A análise desses episódios por Mukherjee é esclarecedora e, a meu ver, definitiva. Ele chama a atenção para as definições estreitas e cambiantes de “inteligência” e de sua mensuração por meio de testes falhos e culturalmente prejudicados. Para entender o debate apropriadamente, porém, temos que reconhecer o quão artificiais são nossas categorias raciais, e isso só para começar. A explosão de conhecimento trazida pelo Projeto Genoma Humano e pelos seus sucessores permitiu levantamentos estatísticos da diversidade genética em grupos que classificamos como “raças”. Entre as raças, essa diversidade é mínima; no interior delas, essa diversidade é enorme.
O gene é e não é o determinador de nossa identidade. Cabe a nós aceitar e compreender esse paradoxo. À medida que aprendemos como o nosso genoma nos define, também aprendemos como transcender nosso genoma. Na era do dna recombinante, o gene se tornou um instrumento de sua própria manipulação. Temos terapias genéticas e edição de genes. Naquilo que Mukherjee chama o mundo “pós-genômico”, exerceremos um poder tão estimulante quanto traiçoeiro. Simplificando: “Aprenderemos a ler e escrever a nós mesmos, a ler e a escrever nosso eu”.
Leia a publicação original: The New York Times