O homem de Copacabana

16/04/2020

 

Conheci Luiz Alfredo Garcia-Roza no começo da adolescência, quando a professora de Português pediu que nós escolhêssemos um livro policial brasileiro para ler naquele semestre. As opções eram O silêncio da chuva e Uma janela em Copacabana, de Luiz Alfredo, ou Bellini e a esfinge, de Tony Bellotto. Pela sinopse, Uma janela em Copacabana me atraiu mais. Não lembro em quanto tempo li, sei que desde a primeira leitura [até o] seu final acachapante grudou no fundo da memória – para nunca mais sair. Foi esse livro que me fez querer ser escritor. Quando li a última frase, a coisa mais cínica que um personagem poderia dizer naquelas circunstâncias, entendi que era aquele tipo de catarse que queria provocar nas pessoas, que era aquele tipo de percurso que eu queria fazer – o mistério até um final sem compromissos.

Anos mais tarde, já no ensino médio, me inspirei em uma colega que sempre andava com um livro debaixo do braço e decidi ler mais. Encontrei Uma janela em Copacabana me esperando num canto e reli. Nas duas semanas seguintes, devorei todos os títulos do delegado Espinosa e me descobri mais um na constelação de pessoas que zanzam pelo Rio de Janeiro e conseguem identificar a Galeria Menescal, o Bairro Peixoto, o Pavão Azul e a 12ª DP na paisagem cotidiana. Era engraçado olhar para aquela minha vidinha besta e pensar que um delegado poderia estar auxiliando prostitutas, professores universitários e esposas de dentistas em suas salvações particulares. Até junho de 2017, foi assim: Luiz Alfredo me contaminou e graças a ele escrevi trocentas páginas que nunca veriam a luz do dia – mas me guiariam até o que eu gostaria que o mundo enfim visse.

No dia 8 de junho de 2017, um dia após meu aniversário de 23 anos, sentei no Villarino, tradicional restaurante no Centro do Rio de Janeiro, para entrevistar Luiz Alfredo Garcia-Roza para o site da revista piauí. Sua esposa, Livia, havia anunciado no Facebook que ele entregara os originais do livro novo. Almoçamos e passamos a tarde inteira em seu escritório, na outra ponta do quarteirão. Foi a entrevista mais extensa que ele havia concedido e, soube duas noites depois, sua preferida.

Eu estava no quarto quando o telefone tocou. Luiz Alfredo queria me agradecer e aproveitar para marcar um novo almoço. Cerca de um mês depois, Livia me chamou para um chá. Estávamos na sala de sua casa, a Baía de Guanabara se descortinando no céu sem nuvens, quando Luiz Alfredo abriu a porta retornando do escritório. Rapaz, ele sorriu, você está aí!

Senta com a gente, Livia disse. Estávamos falando de você.

Controlei meu nervosismo, mas a conversa fluiu. E dali não parou mais. Quando dei por mim, estava frequentando os Garcia-Roza semanalmente, e depois, saindo da faculdade e indo direto para lá, onde Luiz Alfredo me perguntaria sobre as aulas de filosofia e reexplicaria tudo que o professor havia dito. Naqueles momentos era como se uma faísca brotasse no topo daquela cabeça branca e o velho professor da UFRJ se materializasse entre queijos, pães e uma garrafa de vinho. Gastamos tardes e mais tardes debatendo literatura policial – quem era melhor, Chandler ou Hammett? – e questões de filosofia. Certa vez, Luiz Alfredo chegou com uma caixa gigante. Ajudei-o a pôr no chão. Sorrindo, ele disse: é para você, fui lá no escritório buscar. Quando abri, simplesmente todos os seus arquivos e anotações de décadas sobre Hegel, Spinoza e outros passatempos filosóficos aos quais ele dedicara boa parte de sua vida.

O convite para editar A última mulher partiu dele próprio. Era tarde da noite e me pediu para dar um pulo em sua casa. Eu morava a cinco minutos de distância. Vesti uma roupa e saí. Na sala, ele tirou os óculos e me chamou para a janela. Falamos da beleza da cidade à noite e Luiz Alfredo perguntou, súbito como sempre o fazia, se eu não queria dar uma lida no manuscrito. Queria saber a minha opinião. Claro, respondi, quero mais que tudo. Livia, sentada na cadeira de sempre, disse: Nem eu li, ele não mostra os livros pra ninguém, você vai ser o primeiro.

No dia seguinte, imprimi e devorei. É muito bom, eu disse.

- Então posso publicar?

- Deve.

O título ainda se chamava Sombras. Durante as infinitas leituras e reescritas de certos pontos do livro – como todo processo editorial que se preze –, chegamos ao título A última mulher. Era mais enigmático que Sombras, e ainda trazia uma espécie de ode sentimental a Raymond Chandler e Dashiell Hammett – poderia ter sido o título de um conto ou romance de qualquer um dos dois. Luiz Alfredo foi extremamente generoso. Não recusou nenhuma das minhas sugestões e trabalhou incansavelmente para dar aos leitores um Espinosa renovado, cinco anos após a última aparição, em Um lugar perigoso. Durante todos os meses em que estive debruçado sobre o original, conhecendo cada linha e sentido, não consegui acreditar que estava editando um Espinosa. Um Garcia-Roza. Um livro que era um presente para o moleque de treze anos apanhando todo dia na escola.

Hoje, repassando os dias de caminhada pela rota do delegado Espinosa em Copacabana, a relação que começou como amizade e foi se tornando de mentor e discípulo – em que ele mesmo dizia não saber quem era o mentor e quem era o discípulo – até evoluir para algo muito próximo de avô e neto – ele sabia que era o avô que eu não tive, e aceitava com felicidade –, não sinto tristeza, apenas saudade. A partida de Garcia-Roza é a partida de um escritor que redefiniu a certa parte da literatura brasileira, mas é também a partida do Luiz Alfredo que eu aprendi a admirar, conversar e, sobretudo, amar. O que fica são as tardes, o cheiro dos queijos e a habilidade com que ele abria uma garrafa de vinho enquanto falava de como O teatro de Sabbath era fabuloso.

Se eu fechar os olhos e apurar o ouvido, escuto o barulho do VLT embaixo do escritório e a risada dele diante de qualquer piada besta. Se eu me concentrar direito, sinto o peso de seu abraço – que não era peso coisa nenhuma. Enquanto houver livros, me haverá Luiz Alfredo. E isso basta.

***

Mateus Baldi é escritor e crítico literário. Fundou a Resenha de Bolso, plataforma de críticas voltada para a literatura contemporânea. Colabora com jornais como O Estado de S. Paulo e O Globo, e revistas como Época, além de outros veículos. Em 2018, venceu o prêmio Paulo Henriques Britto.

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