O motel do voyeur

13/12/2016

Difícil imaginar uma história – e ainda por cima real – tão boa quanto a de O voyeur, publicada esse ano por um dos pilares do new journalism, Gay Talese. Alguns escritores fariam um pacto com o demônio se tivessem a garantia de que receberiam pelo correio, em pedaços uns mais perturbadores que os outros, a peculiar trama da vida de Gerald Foos. Gerald Foos foi um sujeito que comprou um motel no Colorado durante os anos sessenta a fim de observar seus hóspedes na privacidade dos quartos, com a conivência absoluta da esposa. O que o interessava, basicamente, era ver casais fazendo sexo. Durante mais de vinte anos, o estranhão Foos ficou acocorado no forro do motel Manor House acompanhando atrás das falsas grades de ventilação o sexo intenso, depravado ou, na maior parte das vezes, entediante de milhares e milhares de americanos. Essa foi a história que ele decidiu dividir com Gay Talese a partir de 1980 e que somente agora, trinta e seis anos depois, vem a público, trazendo consigo uma avalanche de polêmicas.

Gerald Foos, mais do que um simples voyeur, desempenhou durante duas décadas um curioso papel de antropólogo; tomava nota de tudo o que via e assim ia tirando conclusões sobre a vida sexual do norte-americano comum. De fato, a ideia megalomaníaca de estar mapeando os hábitos da nação parecia o excitar tanto ou mais do que um sexo bem feito entre duas pessoas atraentes. De sua plataforma de observação absolutamente condenável do ponto de vista ético, Foos devia se sentir mais poderoso que o pioneiro dos estudos sexuais Alfred Kinsey ou que o casal William Masters e Virginia Johnson (retratados na série televisiva Masters of Sex). Gerald Foos não dependia do frio ambiente dos laboratórios ou de questionários nem sempre confiáveis. Ele estava assistindo à coisa real justamente porque os participantes ignoravam sua presença. Ao longo do tempo, viu os hábitos se modificarem. Depois do sucesso estrondoso do filme Garganta Profunda, por exemplo, lançado em 1972, a prática do sexo oral entre os hóspedes do Manor House aumentou exponencialmente. A maior parte das nada empolgantes interações sexuais testemunhadas por Foos, de qualquer maneira, assim como a maior parte das conversas – sobre problemas, sobre dinheiro, sobre problemas com dinheiro – serviam como prova contundente de que a vida cotidiana costuma ser um pé no saco. A tristeza e a falta de sentido dessas vidas, escancaradas na privacidade dos quartos, talvez seja o aspecto mais desconcertante de O voyeur.

As anotações minuciosas de Gerald compõem a maior parte do livro. Talese alterna fragmentos dos cadernos de Foos com um relato de como o voyeur chegou a ele, do primeiro encontro dos dois, dos contatos esparsos nos anos seguintes e finalmente do momento, em 2013, em que Foos aceita tornar pública a história (Gay Talese recusava-se a escrever sobre qualquer assunto caso não pudesse usar os nomes reais dos envolvidos).

É verdade que o formato, às vezes, parece preguiçoso para uma história tão boa. No início de O voyeur, Talese conta-nos a respeito de um livro anônimo da Era Vitoriana chamado My Secret Life. Trata-se de um relato voyeurístico de 4.000 páginas que dá uma dimensão mais exata dos hábitos sexuais daquele período histórico do que os romances vitorianos, os quais tendiam a fazer uma certa “limpeza" do universo representado (deixando de lado as prostitutas, por exemplo). O assunto é interessantíssimo. Infelizmente, Talese não volta a sair de um raio muito pequeno de ação – o próprio Gerald Foos e suas observações no motel – o que acaba por limitar as camadas da obra.

Desde o lançamento de O voyeur, algumas pessoas se perguntam se não foi absurdo, do ponto de vista ético, que Gay Talese tenha guardado essa história por tanto tempo, ainda mais sabendo que Gerald Foos continuava a observar seus hóspedes sem que eles fizessem a menor ideia de que isso estava acontecendo. A discussão moral sobre o comportamento de Talese, no entanto, não deve se confundir com as análises da obra. Ou, como diria a sabedoria popular: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de paredeem 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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