O mundo assombrado pelos best-sellers -- ou me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios

01/06/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Os primeiros profissionais do livro não foram os autores nem os livreiros, muito menos os editores -- foram os escrivães. Na Antiguidade e mesmo durante boa parte da Idade Média, a ideia de que alguém era criador singular de algo, ou dono de propriedade autoral, não existia. Os livros -- transcritos em placas de pedra, em rolos de pergaminho ou em folhas de papiro soltas e envoltas em diversos tipos de encadernação -- ainda pertenciam a Deus ou aos soberanos.

Tem-se notícia de algum tipo de comércio que fazia com que os livros chegassem a bibliotecas particulares, ou aos mosteiros. No entanto, grande parte dessas coleções era composta principalmente por doações. O surgimento dos vários profissionais do livro, como o autor, o editor, o livreiro e o gráfico, acompanha as mudanças que vão surgindo com a criação das universidades, e que se acentuam com o final da Idade Média, quando Gutenberg inventa a prensa. Só então surgirão as edições em tiragens um pouco maiores, e os livros serão formatados a partir de um padrão comum, inicialmente com tipos ainda móveis e capitulares pintadas à mão. As mudanças que levaram ao objeto livro com as características que hoje conhecemos se darão no âmbito do crescimento do comércio e com os valores burgueses ocupando o centro da vida social. Assim, o livro de autor só existe quando o fascínio da sociedade pelos deuses diminui, e quando os soberanos passam a exercer outras formas de dominação, nas quais os indivíduos começam a ter mais voz, mesmo que incipiente. É nesse caldo cultural que os escritores passam a assinar suas ideias e ficções e a intervir como agentes sociais singulares.

Por isso, é possível afirmar que o livro, em tiragens que alcançam centenas ou mesmo milhares de exemplares, nasce conjuntamente com o “mercado”, e, mesmo sendo uma das expressões mais puras da individualidade, sempre dependeu do comércio livre para “crescer e se multiplicar”.

Olhando dessa perspectiva, o clamor contra o aspecto comercial do livro é ingênuo, não só nos dias de hoje, mas mesmo se pensado historicamente. Ainda assim, os leitores deste blog veem que, vez ou outra, mantenho vivo certo idealismo, presente desde o dia em que optei por trabalhar com livros. Muitos profissionais do livro no Brasil decidiram por essa profissão se não para interferir na vida cultural do país, ao menos porque gostavam mais do ambiente cultural, ou preferiam se envolver com o comércio dos bens culturais, em vez de atuarem em outros campos talvez mais distantes de seus interesses pessoais, nos quais a remuneração em geral é mais significativa. Trata-se de um tipo de idealismo relativo, ou então do reconhecimento de uma vocação profissional minoritária. Justifico assim, relativizando logo de cara, o meu clamor ou angústia intermitentes pela comercialização exacerbada do ambiente cultural em que vivo. Sei que tenho alguma razão e muita ingenuidade. O mercado editorial sempre foi mercado, e sempre será. No entanto, a percepção de que tudo caminha para a comercialização total das relações editoriais ainda me choca, e sinto a necessidade, mesmo que quixotesca, de me manifestar.

Se o mercado editorial sempre equilibrou valores individuais e singulares -- como a geração de ideias e a criação artística -- com o lado público, onde entram as regras de comercialização e de distribuição, fundamentais para a divulgação do trabalho autoral, nunca a competitividade foi tão selvagem como nos dias de hoje e os valores comerciais tão preponderantes. O mundo editorial atual tem como principais personagens -- além de autores, editores, livreiros -- as grandes corporações (e minha empresa tem como sócia uma das maiores delas) e também os agentes literários. Esses últimos atuam representando os interesses dos autores frente a editoras ou a grandes corporações. Além desses existem também os scouts, representantes contratados pelas editoras e que atuam nos principais mercados procurando novos títulos. Eles existem para que seus clientes, as editoras, cheguem com rapidez às novidades, possuam informação antecipada para a compra de direitos. A maioria das grandes editoras possui scouts, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Saber de um livro antes dos outros vale ouro.

Já os agentes literários surgiram para que os escritores pudessem se dedicar a escrever, e também pela costumeira falta de habilidade dos artistas e intelectuais em geral para com os negócios. O fortalecimento das editoras em corporações de grande dimensão acentuou a necessidade de representação e defesa dos interesses autorais, em busca de equilíbrio nas negociações no mundo dos livros. No entanto, a aglutinação das editoras em mercados fortes e o crescimento do poder dos agentes literários levaram a mudanças no perfil das relações entre autor e editor. Ao ganhar mediação necessária, a natureza dos laços entre importantes produtores de conhecimento e entretenimento mudou, por vezes beneficiando o aspecto comercial em detrimento de outros. Nesses casos, ocorreram perdas significativas, e o elo mais prejudicado foi o pessoal, incluindo aí o valor artístico da criação autoral, ou mesmo os laços de lealdade, de cunho quase familiar, que uniam os envolvidos na produção dos livros. Isso não quer dizer que não existam editores com sensibilidade trabalhando em grandes empresas ou que todos os agentes ignorem a densidade intelectual e pessoal presentes no mundo da cultura. As generalizações são sempre perigosas, e é bom dizer que há muitas exceções que não só comprovam a regra, como honram a profissão.

Diante disso, me arrisco a dizer que, com as mudanças aceleradas das engrenagens do sistema, passa a ser cada vez mais raro encontrar o velho espírito artesanal e amoroso muitas vezes presente no universo dos livros de outrora.

Jogo jogado, como se diz, faço parte desse mundo, não me isento de responsabilidade e não tenho nada a reclamar dos valores comerciais que regem minha profissão. Creio que as técnicas mercadológicas ou empresariais são um dado do mundo em que vivemos, e não há como escapar delas, se quisermos sobreviver e até mesmo criar. Há brechas e incentivos que o próprio crescimento industrial traz, e para o bem. Mas quando a competição toma conta das relações de forma totalitária, apaga sentidos e tradições importantes, principalmente no que se refere a laços que envolvem pessoalidade e individualidade e são parte fundamental na produção de um livro. É uma pena. O que vivemos hoje é a contaminação majoritária, ou a disputa entre ambientes produtivos (ainda fundados em relações de intimidade familiar ou amorosa) e a vontade hegemônica de valores exclusivamente comerciais.

Na minha opinião, o livro não reage bem a procedimentos absolutamente padronizados, a estratégias cheias de generalidades e sem espaço para surpresas. Dessa forma, muitos valores têm se perdido num ambiente que caminha para a bestselerização absoluta das estantes das livrarias. Com o crescimento desmesurado da disputa por novos títulos, todos perdem. Some o livro de permanência, sem espaço nos catálogos das editoras e nas vitrines das lojas, que por sua vez precisam do giro rápido para poderem sobreviver. Crescem os adiantamentos para livros que propõem o sucesso rápido, sendo que os autores que se dedicam à criação menos comercial perdem lugar. Se beneficiam aparentemente:

1) os editores que acertam no milhar e que hoje compram na maioria dos casos com base no relatório dos scouts, sem ler com calma os livros que publicarão. Com isso, comprar direitos virou, em certo sentido, um jogo de tabuleiro ou de azar. A leitura conta menos que a intuição ou o tino comercial;

2) os agentes que intermedeiam essas vendas milionárias. Uma parte das compras de direitos se efetua em leilões onde pouco vale o trabalho pregresso das editoras, equiparadas na interrogação de “quem dá mais?”;

3) os autores que têm um livro incensado pelos scouts e que veem seu adiantamento crescer até chegar às alturas, por conta da competição entre os editores, ávidos pela descoberta de um novo best-seller;

4) o livreiro que expõe os livros de sucesso, mas antes cobra pelo espaço diferenciado que a eles dedicará em suas livrarias.

Nessa cadeia, os mesmos beneficiários talvez esqueçam de que estão apagando de sua vida o que os sustentou durante séculos: a venda constante de livros bons, mas sem propensão para a lista de mais vendidos. Fica olvidada a transmissão de um conhecimento e uma forma de criação artística que moldou tantos seres humanos através dos tempos. Será que um novo Nietzsche ou um novo Drummond vão conseguir aparecer, se seus ensinamentos ou a criatividade não vierem embalados no formato de um best-seller? Será que um livro que vende sempre não vale tanto para a cadeia comercial quanto um que vende muito, mas por pouco tempo? Ou que promete retorno fácil e entrega uma decepção de largas proporções?

Alguns anos atrás, fui convidado a um encontro de publishers organizado pela Penguin. Era minha estreia num grupo de editores que se reunia anualmente para discutir questões ligadas ao mercado de livros. As discussões foram interessantíssimas, e aprendi muito. Mas o enfoque mercadológico e financeiro foi tão preponderante que, ao final, quando os organizadores do evento pediram sugestões para a próxima reunião, mesmo com a timidez de quem participa pela primeira vez, levantei a mão e disse:

-- Será que no ano que vem podemos falar também sobre livros?

A riqueza do mundo da edição advém da diversidade. Cada tipo de livro tem sua própria personalidade. Por alguns, nos apaixonamos rapidamente. Outros nos ganham com o tempo. Uns vivem ao nosso lado para sempre, outros geram uma atração tão forte que deles não podemos largar. Mas nem todos, sobretudo dessa última categoria, desejaremos reencontrar no futuro. Cada qual tem seu tempo e pretensão. Não há livros superiores ou inferiores. Vender mais não é necessariamente mérito ou demérito. No entanto, a homogeneização pode ser cruel para o mercado de livros, ou para a cultura como um todo. Não há culpados isolados nesse processo. É uma combinação de fatores, que procurei descrever, que leva à bestselerização dos catálogos editoriais e dos balcões das livrarias.

Os editores ou as empresas para as quais trabalham não são necessariamente vilões, como não são também os agentes literários ou os autores que praticam gêneros literários de fácil absorção. Tampouco é o caso de culpar as livrarias que usam todos os recursos que estão ao seu alcance para sobreviver e competir com os grandes atacadistas. Elas acabam abandonando o critério editorial na organização do espaço da venda e expõem os livros que dispõem de verba de marketing para a compra de áreas nobres de exposição. De modo geral, esses livros são os mesmos nos quais investimos adiantamentos altíssimos, somas vultosas que precisamos fazer retornar. Naquelas horas que antecedem à abertura das lojas, os livreiros de um modo geral são obrigados a dispor de seus balcões expondo as grandes apostas de sucesso, não podendo arrumar a casa levando em conta o gosto de seus clientes.

No mundo ideal deveria haver espaço para todo tipo de amor aos livros, seguindo a velha canção que dizia “qualquer maneira de amor vale a pena”.

Num mundo que luta pela aceitação da diversidade, onde ficam os livros fora da norma, os livros cujo tempo é lento, mas que tanto têm a nos dar? De toda forma este é um caso complexo, por estarmos pensando num produto, num comércio, no qual as discussões se dão no âmbito do mundo dos negócios e não em fóruns políticos e sociais. As regras são ditadas pelo mercado, onde todos temos cada vez mais pressa, e a pressa, me permitam o trocadilho, é a inimiga da edição.

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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