O prêmio para um homem verdadeiramente generoso

05/10/2017

Foto: David Harrison

Certo dia no fim de 1999, ou início do ano 2000, eu me encontrava numa casa de praia em Juquehy, no litoral paulista, recolhido, passando por severa depressão, quando recebi um telefonema de Londres da minha amiga e agente Ann Warnford-Davis. Ann era a chefe de foreign rights de Deborah Rogers, a lendária e mais elegante agente literária de todos os tempos. Eu pouco falava de assuntos de trabalho naqueles dias, mas atendi o telefonema. Ann ligava gentilmente para me consultar sobre um autor que na ocasião era editado pela Rocco e que, por decisão da agência, gostaria de mudar de editora. Tratava-se de Kazuo Ishiguro.

Respondi a Ann positivamente, falando da minha admiração pelo escritor, mas disse que só poderia fazer oferta para o novo livro depois que a editora que cuidava de sua obra fosse informada que a iniciativa da mudança era da agência e não minha. Ann concordou, e poucos dias depois me mandou o manuscrito de When we were orphans pelo correio. Acho que li o livro ainda em Juquehy. Ao menos em minha memória guardo a contratação e a leitura do original de Ishiguro para a Companhia das Letras como momentos de luz num período triste da minha vida.

Meses ou poucos anos depois, com o livro já publicado, Ann me disse que, quando eu fosse a Londres, Ish, como é chamado pelos amigos, teria prazer em me conhecer. Aquela luz que pintara em Juquehy continuava a brilhar, mesmo já fora da depressão. Com grande emoção, arrumei logo um jeito de incluir Londres na viagem mais próxima e fui ao encontro de Ish e Lorna, sua esposa, tendo Ann como grande anfitriã. O encontro foi marcado em um restaurante muito simples, perto da casa do autor.

Cheguei ansioso e pronto para perguntar tudo o que minha timidez permitisse. Não foi preciso, ou melhor, não foi possível. Ann, que era casada com um editor de origem judaica, havia sido das poucas pessoas no mercado editorial internacional que havia sinceramente gostado do meu livro infantil, Minha vida de goleiro, sobre como meus pais sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, e por isso decidira encaminhar uma cópia do texto em inglês para Ish, que não me permitiu falar de outro assunto. O almoço inteiro girou ao redor do passado de meus pais, da chegada ao Brasil depois da guerra e de uns outros dois assuntos que dominaram totalmente a mesa, impedindo que eu falasse de Quando éramos órfãos. Ish queria saber minha opinião sobre os melhores goleiros do Brasil, por que Felix, sendo um goleiro medíocre, havia defendido o timaço de 1970, se eu não achava que os reservas Leão e Ado não eram melhores, se eu teria visto Gilmar jogar, o que eu achava de Carlos, um goleiro com passagem pela seleção brasileira, sobre Taffarel etc.

Ish demonstrou conhecer a escalação dos times nacionais brasileiros de cor, melhor que eu. Saí do almoço com o ego nas alturas, espantado com a modéstia do grande escritor e também com a generosidade da surpresa preparada pela minha amiga, que havia mandado a Ishiguro meu pequeno livro infantil. Por outro lado, estava muito sem jeito pela inversão de papéis. Afinal, eu queria homenageá-lo, paparicá-lo e perguntar uma série de outras coisas a ele.

Kazuo Ishiguro é um escritor que escreve lentamente e não conta a seus editores com antecedência sobre o que está trabalhando. Assim, tive algum contato com ele nesses anos numa relação mais afetiva que constante. Mandei a ele o livro de Ruy Castro, Chega de saudade, em inglês, já que ele passou a compor música para Stacey Kent e mergulhou profundamente na bossa nova. Escrevi sobre a intensa emoção que senti ao ler O gigante enterrado, e comemoramos quando a capa brasileira de Alceu Nunes foi comprada em vários países. Lili e eu conversamos com Ish sobre Lima Barreto e sobre Raduan Nassar, cujos livros lhe enviei, em nosso encontro mais recente, por ocasião da última feira de Londres, quando recebi um pequeno prêmio. Ele foi dos primeiros a me congratular e marcar um jantar de comemoração um dia antes da cerimônia, à qual não poderia comparecer. Fomos jantar os dois casais e seu editor americano, Sonny Mehta. Ish escolheu um restaurante russo no Soho, divertidíssimo, onde comemos frango à Kiev, regado por alguns copos de champagne, pedido por meio de uma campainha, coisa que o fazia rir pelo espírito divertidamente russo do local.

Foi este o meu mais recente e delicioso encontro com um dos autores estrangeiros que mais amizade me devotou e que hoje, para surpresa dele e de todos nós, ganhou o Nobel de Literatura. Disse-me sua agente que o primeiro a ligar para o autor teria sido V. S. Naipaul, a quem Ishiguro desdenhou, dizendo que a informação não podia ser verdade. Minutos depois, ele falava com a sua atual agente, Laurence Laluyaux, que substitui Ann na agência de Deborah Rogers, enquanto eu telefonava para ela. Deborah Rogers, que amava Ish, morreu poucos meses depois de receber o mesmo prêmio que me foi agraciado, numa linda homenagem cujo discurso coube a Kazuo. Na ocasião, ele falou da elegância de espírito de Deborah, comparável ao descuido presente no seu modo de se vestir e no caótico escritório onde trabalhava. Deb sempre vibrou ao ler cada linha de seus dois escritores do coração, Ian McEwan e o agora Nobel Kazuo Ishiguro.

Que alegria um ser humano de tamanha generosidade ganhar o tão cobiçado prêmio – e que sorte a minha conhecê-lo de perto e poder celebrar brevemente entre amigos, no frio de Estocolmo, essa que será uma memorável premiação. 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

 

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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