O tempo de cada um

14/11/2017

“Tempo pra ler, todo mundo tem”. Esse é o slogan da Feira do Livro de Porto Alegre, o tradicional evento da capital gaúcha, em sua sexagésima terceira edição. O evento já teve muitos slogans e campanhas publicitárias marcantes, mais barracas e jacarandás em flor (esse ano, as florzinhas roxas vieram antes). Houve um tempo em que havia uma editora nazista – e punks protestando na frente –, disso não tenho saudade nenhuma. Mas comecei a sentir um saudosismo estranho de quando havia em destaque, em todas as barracas, o livro de algum comunicador do jornal Zero Hora ou da Rádio Gaúcha. Queria dizer que jornalismo era uma coisa do cotidiano, e que a literatura ainda podia chegar lá.

“Tempo pra ler, todo mundo tem”. Achei um slogan corajoso. Uma indiretíssima do bem. Só não sei se as pessoas estão prontas para lidar com isso, com o fato de terem essa verdade jogada na cara, “tempo você tem, gata”, “para de rolar esse feed”, “uma temporada de uma série ruim é mais demorada que a leitura do primoroso Manual da faxineira”, etc.

Outra coisa sobre a qual não tenho certeza é se essa postura bélica – miga, pega esse livro, tempo você tem! – é uma eficaz estratégia de convencimento para pessoas que, por um motivo ou outro, optaram por fazer outra coisa que não ler, mas que ainda sentem algum tipo de pressão social e então lascam um desesperado “não tenho tido tempo para isso”. A gente adoraria que tivessem, claro, porque nossa vida gira em torno disso, nós compramos mais livros do que deveríamos e essa por exemplo é minha única compulsão – ok, há também as plantas. A gente adoraria ver pessoas se exaltando num jantar por causa do último livro da Ali Smith e eu gostaria de dizer para todo mundo que chorei ao ler em voz alta para minha namorada os parágrafos finais de Todos os belos cavalos, o mundo seria melhor se se parecesse com aquela sala do Conexões Itaú Cultural, os quixotescos brasilianistas de todo o mundo discutindo as traduções de Cidade de Deus, Macunaíma, Grande Sertão: Veredas. Seria. Estou supondo. De repente ninguém queimava boneco da Judith Butler. Pelo menos iam ter aprendido que era melhor ler o livro primeiro. Ou alguma coisa sobre empatia, claro. Sempre alguma coisa sobre empatia.

E eu acho que vou confessar um negócio. Vou confessar que acho meio humilhante quando a gente precisa sair do livro para chegar nas pessoas. Quando os professores precisam falar em música e cinema para chegar nos universitários porque livro não rola. Quando o livro vira espetáculo falado com elenco hollywoodiano. Posso estar já meio embolorada e ficando pra trás. Porque algo que a gente ainda não consegue evitar nessa curta existência é ficar sentindo saudades de um tempo que, analisando friamente, devia ser muito pior.

Mas é isso. Eu acho que ninguém precisa ser convencido de que ler é bom porque ler é simplesmente sensacional e então fiquem com as palavras de Umberto Eco: “o livro é como uma colher, tesouras, um martelo, a roda”, ele diz. “Uma vez inventado, não pode ser melhorado. Você não pode fazer uma colher melhor do que uma colher.”

* * * * *

Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu segundo livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013, e em novembro lança O clube dos jardineiros de fumaça. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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