Otto

29/11/2017

Por Ana Miranda

Lembrar de Otto Lara Resende é sempre pertinente, divertido, e um exercício de inteligência. Além de autor de uma pungente ficção, fabuloso cronista, senhor das frases antológicas, gigante no jornalismo, ele foi também um mestre no portrait. É o que vemos neste livro, O príncipe e o sabiá, em que Otto traça maravilhosos retratos de pessoas como Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Alceu Amoroso Lima, Rubem Braga, Luís Carlos Prestes, Adolpho Bloch, num conjunto de sessenta perfis. Tudo recordação pessoal. A ideia de Otto era compor um livro que ele dizia ser uma “Autobiografia do outro”, em que, escrevendo sobre o outro, revelaria a si mesmo. E isso acontece naturalmente, pois Otto era a pessoa mais social deste mundo. O Fernando Sabino contava que um dia tentou fazer uma lista das personalidades que Otto não conhecia, e não conseguiu se lembrar de nenhum nome. Há também no livro uma espécie de retrato de uma época, muito bem descrita nas entrelinhas, nas palavras usadas com precisão, nos comentários de um gênio da observação, da informação e do pensamento, que era o Otto. Delícia de leitura! Bem-vinda a reedição!

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A seguir, leia o perfil de Erico Verissimo por Otto Lara Resende, texto que está em O príncipe e o sabiá. 

ERICO VERISSIMO
4.5.84

Ouso dizer que a minha amizade com Erico Verissimo foi amor à primeira vista. Não sou de todo desmemoriado, mas não me lembro do meu primeiro encontro com Erico. Primeiro, claro, eu o li. Já era seu fã quando um dia, ainda nos anos 30, encontrei o seu volume de contos numa livraria de Belo Horizonte. A emoção com que peguei Fantoches. Era o único dos seus livros que eu não tinha lido. Nem nunca tinha visto. Eu adolescente, doido por livros e escritores. Ele escritor famoso. Mais tarde, no Rio, Justino Martins nos dava notícias da grande figura humana que ele conhecia de perto. Tinham trabalhado juntos na Revista do Globo. Lucinda, mulher de Justino, era irmã de Mafalda. Mais um pouco e Clarice Lispector se tornou amiga do casal Verissimo. Trazia um pouco de surpresa essa amizade. Erico e Clarice não tinham evidentes afinidades literárias. Mas conviveram fraternalmente em Washington e no Brasil. Até que se deu o nosso encontro com Erico. Erico e Mafalda, pois os dois formavam um casal de verdade. Inseparável. O que havia de mais admirável em Erico era a sua naturalidade. A limpeza do seu caráter não trazia nenhum traço arrogante ou autoritário. Era todo harmonioso. Firme, mas suave. Extraordinário senso de humor. Escritor de grande sucesso, Erico Verissimo não tinha pose. Como se fosse um menino. Nossos encontros estiveram sempre cheios de alegria e graça. Graça em todos os sentidos. E tudo graças ao Erico, ao seu espírito. Sua inesgotável capacidade de brincar. Eu imitava um orador idiota, que só se exprimia com lugares-comuns. Erico enfeitava a brincadeira, eu chorava de tanto rir. Saudava-os aos berros, mesmo em plena rua. Como uma vez o saudei no aeroporto de Lisboa, para espanto de toda gente grave que não podia entender aquela farsa. Erico adorava passear, viajar. Vi-o no exterior. Nenhum companheiro podia ser mais agradável e mais estimulante. Uma vez, na minha casa do Jardim Botânico, enganei Erico, saí por uma porta, entrei por outra e passei um tremendo susto nele. E eu é que quase morri de susto. Erico tinha tido o enfarto. Minha troça pegou com tanto jeito que ele se assustou mesmo. Eu no maior remorso e Erico preocupado em desfazer o meu susto, o meu encabulamento pelo que podia ser uma brincadeira
de mau gosto. Esse homem digno e delicado faz muita falta ao Brasil. Faz falta à sua família. Faz falta aos amigos que o conhecemos. A obra literária de Erico Verissimo está aí. Permanece indestrutível. Mas a ausência da doce figura humana, esta é irreparável. A vida me deu o privilégio de ter conhecido esse homem íntegro e bom. Ter sido seu amigo é muito mais do que mereço. Tenho saudade de Erico e penso nele com frequência. Sua lembrança nos faz menos tristes de tê-lo perdido.

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Ana Miranda nasceu em Fortaleza, em 1951. Morou em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje vive no Ceará. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). De lá para cá escreveu diversos romances, entre eles Desmundo (1996), Amrik (1997), Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras), Yuxin (2009), e Semíramis (2014). Foi escritora visitante em universidades como Stanford e Yale, nos Estados Unidos, e representou o Brasil perante a União Latina, em Roma.

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