Arte: Noemi Jaffe
A lápide esfregou o prego. O rumor esquentou o passado. A fragata entregou a merenda. O vazio absorveu o quintal. O poço passou por aqui.
Lápide de pregos. Quentes passados rumorejantes. O merenda entregando as fragatas. O o vazio. Aqui não há poço.
O vazio o. Passagata. Lápigo.
Era uma vez um passado, dentro de um poço. Ela olhou lá no fundo e viu uma fragata de vazios, uma passeata de fragatas rumorejantes e quentes entregando merendas para as lápides que passavam. Ela pregou um prego no poço e esfregou-se nele.
Era uma vez um vazio, dentro de um passado, afundado numa fragata, entregue num quintal. Ouvi um rumor, de dentro do lápide. Esfreguei o prego que me prendia a ela e saí. Só um poço quente.
No calor do poço, eles ouviam o rumor, nas lápides entregues pelas fragatas: merenda, merenda! Só o vazio do passado pregava a passagem.
Passado, vazio, quintal, fragata, poço, merenda, lápide, prego: o, o, o, o, o.
Por onde andam as palavras que não posso dizer? Onde elas se esconderam, por baixo de que línguas, palatos, gengivas? Quero buscá-las no ninho, verdes ainda, furtá-las de seus significados, usá-las antes que elas queiram dizer, queiram dizer, queiram dizer. Palavras dizem qualquer coisa, se trocam por qualquer significadozinho simbólico, qualquer reles metáfora. Onde vou encontrar o som daquele oh, aquele mesmo, só um, o oh duro, primeiro, o oh que não é da morte nem da vida, o ah que é uh? Por que vocês me roubaram o tato desse som, desse silêncio de cara na terra, de olho no chão?
Como fazer com que a palavra sonho, que tive por tantos anos, mas perdi, queira dizer, por exemplo, coruja? Contar que aquilo, a mala, o lenço, a pedra, o pau, aconteceram, mas vocês não querem ouvir, porque não têm ouvidos nem sabem escutar as palavras que falam: pedra, ouviram? Ouviram isso - pedra? Não, vocês não conseguem ouvir.
Primo Levi conta que, voltando de Auschwitz, com o tanto que tinha para contar, percebeu que ninguém, nem na sua família nem entre seus amigos queria, nem podia ouvi-lo. Ele ficou com o sonho de contar suas histórias preso na garganta, adiado por anos e reservado somente para a escrita. Já Herta Muller inventa um personagem que, retornando de um campo de trabalhos forçados na Rússia, é recebido pelos pais com um aceno de cabeça. Eles já tinham se habituado à ideia da sua morte e não pareceram muito contentes em ter que se dar ao trabalho de ouvir histórias cheias de sofrimento. Torturados pela ditadura brasileira, homens e mulheres preferem encontrar-se com seus pares, porque quem não passou por isso ou não quer ouvi-los ou não consegue entendê-los.
Esse pequeno texto é uma tentativa-homenagem de dizer o indizível, aquilo que a linguagem não parece comportar, agora que, novamente, o país parece ameaçado de enterrar a língua franca e livre da poesia.
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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.