Promessa de Ano Novo: Escrever um romance. Ou não

20/12/2017

Consulta #2

Há bastante tempo estou tentando escrever um romance. Eu já tentei de tudo: li um monte de livros para aprender, fui para várias oficinas literárias, cursinhos, aulas de literatura, clubes de leitura e para todos os lançamentos de livros na minha cidade, onde eu pedi conselhos pros autores. Passei horas, dias, diante da folha em branco e nada, não consegui produzir nada de que eu realmente gostasse. Para falar a verdade, eu já estou quase desistindo e acho que, em vez de insistir, eu deveria aproveitar a virada do ano para começar uma nova vida. Tem pessoas que prometem parar de beber, parar de fumar. Eu quero prometer parar de escrever. Ou ainda melhor: parar de achar que eu devo escrever. Você poderia me ajudar? Será que você tem um método para comprovar se eu deveria parar de escrever ou se de verdade sou escritor?

Obrigado,

Zeudônimo.

Olá, Zé, tenho, sim: é só seguir as seguintes indicações. Com este método, se você é escritor, finalmente conseguirá escrever esse romance. Mas, se chegar no final das instruções e não conseguir escrever nada, está claro que o melhor é parar de escrever. Boa sorte!

1. Limpar a mesa de trabalho. Trazer o caderno, as canetas, o computador. Se for o caso, trazer também o material de que você precisa pra escrever esse romance: documentos, imagens, livros.

2. Trazer à mesa alimentos que têm propriedades macrobióticas comprovadas do ponto de vista da criação literária: banana, maçã, mexerica, amendoim, avelãs, amêndoas. Batata frita, não. De jeito nenhum. Nem salgadinhos. Coxinha é proibida. Coxinha é contra a literatura.

3. Aproximar-se das prateleiras da sua biblioteca. Procurar um livro que você odeia. Ler dois ou três parágrafos aleatórios até se achar superior a esse escritor vagabundo. Insultar, em voz alta, o autor. Insultar também a editora. A mãe do escritor. O fundador da editora. O júri do prêmio que o romance ganhou. O fotógrafo que fez o autor parecer genial, melancólico, misterioso e, pqp, muito bonito. Jogar o livro no lixo.

4. Ir fazer xixi e, se for necessário, “evacuar o ventre”. Lembre que o espírito precisa de paz intestinal.

5. Colocar o celular num saquinho de plástico com fecho hermético e botar o saquinho na caixa d’água da privada.

6. Lavar as mãos, seu porco.

7. Voltar pra mesa de trabalho. Pegar o caderno, a caneta, respirar fundo, olhar pro infinito, que fica aí na frente, na parede, e começar a escrever o romance. Se depois de alguns minutos você não conseguir produzir nada: coma a banana.

8. Pausa previsora: levantar da mesa e procurar a correia do Salinger, seu cãozinho. Sair pra rua. Não é perder o tempo, não: muitas ideias geniais para romances se perderam pela intransigência tirânica das bexigas caninas.

9. Ao voltar pra casa, resgatar o livro jogado no lixo. Recortar a foto do autor. Jogar o livro no lixo de novo. Guardar a foto onde ninguém vai achar: entre as páginas de Joyce ou Proust, por exemplo.

10. Sentar na mesa de trabalho. Dar uma olhada no que você escreveu até agora. Se ainda é nada: comer amendoim.

11. Atender o telefone fixo, porra. Como eu ia saber que você ainda utiliza esse aparelho pré-histórico?

- Bom dia, tô ligando do Banco do Brasil pra oferecer pro senhor um crédito fácil. Você pode ter acesso a até dez mil reais sem juros e só precisa responder umas perguntinhas muito simples. O senhor estaria interessado?

- Tô sim.

- Perfeito. O senhor trabalha com quê?

- Eu sou escritor.

- Muito obrigado. Que tenha um ótimo dia.

12. Desligar o telefone fixo da tomada.

13. Ir pro banheiro. Trancar a porta. Resgatar o celular da caixa d’água da privada. Entrar no Twitter. Com o usuário anônimo, lógico. Insultar dois ou três ou quatro escritores de sua geração. Colocar o celular de volta no saquinho etc.

14. Voltar para a mesa de trabalho. Ligar o computador. Procurar o arquivo com a transcrição do avanço do romance. Se não tiver produzido nada: abrir o navegador. Resistir ao chamado imperativo de YouPorn. Fechar o navegador. Abrir o navegador de novo. Digitar: YouP... Fechar o navegador.

15. Levantar da mesa para esticar as pernas. Dar um passeio pelo apartamento, atento a seus passos. Lembre que caminhar tem um ritmo e uma sintaxe que podem ser aproveitados na escrita. Além do mais, caminhar faz bem para a digestão. Enquanto caminha, tente ter alguns pensamentos profundos. Ou, pelo menos, faça de conta que os tem. Coloque a mão no queixo, passe a mão na barba – se tiver barba. O Salinger vai adorar o espetáculo.

16. Lavar a louça. Você sabia que grandes escritores, Dostoiévski, Kafka, Borges, Coelho, tiveram suas melhores ideias lavando louça? Você sabia? Eu também não. É mentira. Mas alguém tem que lavar a louça.

17. Escrever de uma vez o romance: quer dizer, pelo menos uns parágrafos que prestem. Se não conseguir: continuar para o seguinte ponto.

18. Conectar o telefone fixo na tomada. Ligar para sua mãe: faz muito tempo que você não fala com ela, seu desalmado.

- Oi, mãe, tudo bem?

- Não posso falar, tô assistindo a novela.

- Está tudo bem por aí? E meu pai?

- Seu pai tá no boteco com os amigos. Tem jogo do Corinthians.

- Jogo do Corinthians no horário da novela?

- Pois é, meu filho, esse país está fodido, você não percebeu?

- Mas tá tudo bem com vocês?

- Me liga em outro momento.

19. Ir às prateleiras e resgatar a foto do escritor bonitão. Ficar olhando a foto cinco, oito minutos. Suspirar. Tirar a foto de sua mãe do porta-retrato do criado mudo. Colocar a foto do escritor.

20. Voltar para a mesa de trabalho. Pegar a caneta. Dar uma olhada no caderno para revisar o que você tem anotado por aí. Se não tem nada interessante: lembrar de alguma coisa muito triste e inspiradora. Aquela pessoa. Aquele gatinho fofo da infância que morreu atropelado. Aquelas férias em Ubatuba em que não parou de chover. Aquele freela que, oito meses depois, ainda não te pagaram. O presidente do Brasil. O futuro do país. Chorar baixinho enquanto descasca a mexerica.

21. Comer a mexerica aos prantos.

22. Abrir o Facebook no computador. Publicar: “Minha promessa de ano novo é parar de escrever. A vida está aí fora e eu não quero ficar trancado em busca de um romance. Eu quero é voltar pra vida. Se segura, que vai ter muitas emoções novas em 2018”.

23. Ir para a geladeira. Pegar uma cerveja.

24. Ligar a TV. Zapear até achar o jogo do Corinthians.

25. Vigiar os likes no seu post.

26. Você não pagou a conta da TV a cabo? Assistir a novela. Fazer cafuné no Salinger.

Feliz ano novo.

Revisão: Andreia Moroni

* * * * *

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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