Racionais MC’s chegam à Unicamp

31/07/2019

Foto: Klaus Mitteldorf

Nasci professora. Para alguns, tal assertiva pode parecer um tanto quanto duvidosa. Acontece que essa foi a única explicação plausível que encontrei para definir o meu interesse precoce pela docência.

Ainda pequena, passar horas folheando os livros e cadernos do Dennis e da Miriam, meus irmãos mais velhos, era um verdadeiro deleite. Nenhuma brincadeira parecia ser mais atrativa do que ensinar minha amiga Bárbara a ler e a escrever. Aos 10 anos, eu era a professora. Ela, aos cinco, a aluna.

Na adolescência, tornar-me educadora era algo vivo, mas ainda faltava escolher qual curso seguir. Poucos meses antes de prestar o vestibular, encontrei o livro Raízes do Brasil, do historiador Sérgio Buarque de Holanda, na biblioteca da minha escola. Pronto. Não restavam mais dúvidas a respeito de quais caminhos eu trilharia.

Passei toda a graduação em História imaginando o momento em que assumiria uma sala de aula. Se Sérgio Buarque influenciou a minha escolha profissional, Chico embalava os meus sonhos de ilustrar as aulas sobre a ditadura militar com suas canções. Verdadeiros planos de ensino eram delineados na minha cabeça: após leituras e discussões, meus alunos e eu cantaríamos músicas como “Apesar de você”, “Roda viva”, “Vai passar” e tantas outras.

Em 2008, o dia tão esperado finalmente chegou. Assumi o cargo de professora substituta em uma escola da periferia de Ribeirão das Neves, um dos municípios mais pobres de Minas Gerais. Para a minha surpresa, as meninas e os meninos que ajudaram a materializar o meu sonho de ser professora jamais tinham ouvido falar em Francisco Buarque de Hollanda. Mas isso não era um problema, muito pelo contrário. Eles sabiam cantar como ninguém as longas letras dos Racionais MC’s. Naquele espaço hostil e marcado pela violência, vi no grupo do Capão Redondo a oportunidade de estabelecer uma relação de respeito e confiança com os meus alunos. Vi naqueles raps um caminho para dar sentido ao exercício de aprender e ensinar.

Em minhas aulas, as letras produzidas no “extremo sul da Zona Sul” de São Paulo deixaram de ser vistas como “música de marginal”, tornando-se um instrumento eficaz para construir identidades positivas e compreender a História do Brasil. “Negro drama”, um dos principais raps do repertório dos Racionais, trazia o entendimento de que as “vielas e cortiços” nos quais meus alunos viviam não eram fruto da vontade divina, mas, sim, resultado de uma sociedade que impõe aos pretos, pobres e favelados a condição de produtos descartáveis, “como modess usado ou Bombril”.

Vejo na obra de Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock uma arma poderosa para a promoção de uma educação antirracista e libertadora. Desse modo, recebi com muita alegria a notícia de que nesse ano, os candidatos a uma vaga na Unicamp, uma das universidades mais prestigiadas do país, terão que se debruçar sobre o disco Sobrevivendo no inferno, considerado “a imagem mais bem-acabada de uma sociedade genocida que se tornou humanamente inviável, e uma tentativa radical, esteticamente brilhante de sobreviver a ela”.

Para se preparem para a prova, os vestibulandos poderão contar com uma ferramenta valiosíssima. Em 2018, vinte e um anos após o lançamento de Sobrevivendo no inferno, a Companhia das Letras transformou o disco em livro, reunindo em suas páginas letras e fotos do grupo paulistano.

No processo seletivo da Unicamp, a obra dos Racionais se insere na categoria poesia. A leitura e a interpretação dos versos exigem dentre outras habilidades, a compreensão do contexto social, cultural e histórico em que eles foram escritos. As primeiras páginas da publicação da Companhia das Letras trazem um ensaio primoroso e definitivo de Acauam Silvério de Oliveira. Doutor em Literatura Brasileira, em 2014, Acauam defendeu na Universidade de São Paulo (USP) uma tese a respeito da trajetória do quarteto liderado por Mano Brown.

Acauam de Oliveira disseca o Brasil do qual emergiram as letras de Sobrevivendo no inferno. O pesquisador remonta os anos de 1990, década marcada pelas chacinas da Candelária, de Vigário Geral e do Carandiru, massacre que deu vida a “Diário de um detento”, um dos maiores clássicos dos Racionais MC’s. O pesquisador lembra que, no disco, esses episódios não aparecem como fruto do acaso ou como uma tentativa de coibir “criminosos”, mas como um “modelo de organização social, ancorado numa série de mecanismos herdados da escravidão e aprimorados durante a ditadura”.

O pesquisador lembra ainda que Sobrevivendo no inferno nasce em um período de insurgência dos “sujeitos periféricos” na busca por melhores condições de vida e pelo reconhecimento da periferia não somente como espaços de pobreza e violência, mas também propulsora de arte e cultura. Nos dizeres de Acauam de Oliveira, o disco dos Racionais imprimiu novos contornos ao rap nacional e, de forma inédita, escancarou as desigualdades existentes no país, o que o coloca no mesmo grau de importância de obras como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Chega de saudade, de João Gilberto e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. A essa lista, acrescento Construção, de Chico Buarque.

A leitura de Sobrevivendo no inferno permite aos vestibulandos uma maior apreensão dos versos que desnudam um Brasil em que “60% dos jovens sem antecedentes criminais já sofreram violência policial”, conforme aponta a letra de “Capítulo 4, versículo 3”. Um Brasil em que “as senhoras de roupa humilde e pele escura” choram os filhos mortos pela polícia. Um Brasil que nos dizeres de Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock, “a liberdade foi roubada e a dignidade, violentada”. Um Brasil cuja “lei é falha, violenta e suicida”.

A leitura do livro permite também elucidar e tornar visível um Brasil que, apesar do apartheid sócio-racial, resiste e pulsa. Um Brasil do qual floresceu a “mais radicalmente engajada obra da música popular brasileira”. Um Brasil que segue em busca da “fórmula mágica da paz”.

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Luana Tolentino é Mestra em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente, é professora da mesma instituição. Entre 2008 e 2018, lecionou História em escolas públicas periféricas de ensino Fundamental e Médio.

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