Sombras literárias

08/11/2016

Nós diante de uma vitrine de doces mirabolantes. Andares de creme e camadas crocantes e morangos equilibrados em açúcar de confeiteiro. Qualquer coisa com chocolate é sempre o vencedor, mas alguém ouviu falar que o bolo de cenoura com cobertura de cream cheese revolucionou o mundo das papilas gustativas na década de trinta. O começo de nossas vidas como leitores é mais ou menos esse: há tantos mistérios e sensações nos esperando, e todos os livros parecem valer a pena, mesmo que a gente não tenha idade suficiente para penetrar em algumas sutilezas tipo caramelos com sal marinho. A gente faz uma cara de “interessante" e depois corre para mastigar escondido a textura borrachenta de um brigadeiro.

Com o passar do tempo, vamos aprendendo a descartar o que não nos interessa. Aliás, em todos os aspectos da vida. Ainda assim, há aqueles que continuam reverentes incorrigíveis, acreditando que qualquer manifestação literária merece sua atenção e apreço, e que muito provavelmente irão xingá-lo caso você não abrace a literatura sem exceção. São as pessoas que, em eventos literários, vão sugerir que os estudantes passem a ler autores locais nas escolas, não colocando sequer em questão o sentido de ler no Ensino Médio sonetos de amor horrorosos, a cópia da cópia da cópia da cópia made in Arroio dos Ausentes. É como se a Literatura, essa grande arte que nos ilumina e nos torna pessoas melhores, nunca pudesse ser Literatura Ruim. Sim, existe literatura-ruim, como existe literatura-que-não-é-pra-mim, como também existe literatura-que-não-é-pra-mim-nesse-momento-da-vida, etc. Não há nada de mau em aceitar isso. Gosto. Momentos. Livros que não são tão bons assim. Livros que não são tão bons assim mesmo que falem de minorias com a melhor das intenções. Livros com ideias ótimas, mas cujo estilo pode não me agradar, etc.

Às vezes, tenho a impressão de que o que ocorre não é uma reverência cega à Literatura, mas um envolvimento tão profundo na concretude de coisas como sistema literário e fomento à leitura de maneira que os livros em si, a arte, acabam sendo jogados para segundo plano. Assim, nesse mundo invertido, a ideia sugerida no evento literário parece perfeita: autores locais precisam vender suas autopublicações porque afinal se dedicam a um ofício nobre, mas ingrato; jovens devem ser convencidos pelas escolas de que a Literatura irá levá-los a algum lugar, enquanto essa música pop e esses joguinhos de computador não passam de bobagens. Não. Em primeiro lugar, nem todo mundo que decide escrever um livro precisa ser premiado só pelo esforço de fazê-lo. O livro, infelizmente, pode ser ruim. Em segundo lugar, estimular a leitura na escola é maravilhoso, mas é fundamental respeitar o universo do aluno e não transformar a Literatura em doutrinação, porque o próximo passo (eu estava lá) é chamá-los nas entrelinhas de burros e ignorantes caso não escolham aquele caminho tão rico e tão iluminado e tão recompensador.

O que eu quero dizer é que, quando a qualidade literária desaparece como critério e é substituída por coisas tão diversas como compadrio (pequenos sistemas literários que só existem porque uma mão lava a outra), fomento à literatura a qualquer custo (chamando alunos de burros se aquilo não lhes desperta nada), polícia do politicamente correto (que já barrou Lolita em algumas universidades americanas), a Literatura está sendo vergonhosamente desrepeitada. Ainda que as pessoas achem que a amam. Ainda que as pessoas achem que fazem aquilo pelo bem dela.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de paredeem 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

 

Carol Bensimon

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