Três dias Disney, entre a poesia e o caixa

20/07/2017

Há pouco tempo passei três dias numa terra encantada, onde seres fantásticos e humanos convivem em perfeita harmonia, há sempre música no ar, e ruas e calçadas são impecavelmente limpas e totalmente seguras.

Como sempre, foi uma experiência bizarra, repleta de contradições. Eu estava temporariamente instalada no coração do império Disney, entre os hemisférios dos parques – a dupla Disneylândia e California Adventure de um lado da avenida Katella e, no outro hemisfério, do outro lado da rua, o Centro de Convenções da cidadede Anaheim, ao sul de Los Angeles. Como faz a cada dois anos, a Disney estava reunindo seus fãs e seus parceiros de negócios numa grande convenção/feira, a D23 Expo.

Escrevi sobre o factual desses três dias em outros lugares, mas ainda não consegui processar por completo a experiência interior de me ver, mais uma vez, trancada na bolha Disney, com todas as suas ramificações de conforto e desconforto.

O conforto é fácil de localizar – o conforto, aliás, é o mais perfeito produto da engenharia Disney. Começa na familiaridade – logo na primeira década de existência do que viria a ser a Walt Disney Company, a prioridade era criar uma mitologia compartilhável, acessível, capaz de ser consumida pelas crianças e seus pais, garantia da perpetuação do fascínio e do consumo. Quando eu vi Bambi – o primeiro filme da minha vida – meus pais já eram fãs de Branca de Neve e os Sete Anões, Dumbo e Fantasia. O vírus passou adiante, e em breve estávamos todos vendo juntos A Dama e o Vagabundo e A Guerra dos Dálmatas, assim como meu filho veria Bernardo e Bianca, O Cão e a Raposa e Tron, e as filhas dele se tornariam fãs absolutas de Rapunzel, Frozen e Moana.

Andando pela gigantesca área de exposição das muitas franquias Disney – guarda-chuvas, malas, balas, vestidos de noiva, mini-robôs, sandálias Havaianas – cruzo com famílias inteiras vestidas a caráter, Brancas de Neve e Belles, Jack Sparrows e Mickeys, gerações reunidas por esse mesmo conforto. Paro para conversar com um desses grupos: uma senhora de certa idade vestida de Margarida, um casal como Mickey e Minnie, uma quase adolescente como Belle de A Bela e a Fera. Conversamos. Eles vêm a todos os eventos do fã clube oficial da Disney, a família toda num trailer, viajando do Arizona até Anaheim. "Por quê?", pergunto. “Porque é uma coisa que nos deixa muito felizes”, diz Minnie. “O mundo está tão difícil e feio, aqui neste ambiente Disney nós podemos ser uma família feliz”, completa Margarida, com um sorriso, gesticulando para o ambiente ao seu redor.

Existe um aspecto bonito desse lado-conforto nos parques. Às vezes esqueço que Papai Walt bandeou-se do partido Democrata para o Republicano em 1940, entregou vários de seus mais dedicados animadores ao Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso e achava que todo sindicato de classe era uma célula comunista. Quietamente, os parques da Disney – e meço principalmente pela Disneylândia, minha vizinha – tornaram-se um oásis de inclusividade. E não é só porque se vê gente de todas as cores, culturas, trajes e idiomas circulando com a mesma alegria entre o Castelo da Bela Adormecida e ToonTown – é também pelos casais LGBTQ passeando de mãos dadas, os grupos uniformizados de bikers e punks e metaleiros nas filas, tomando sorvete, fazendo selfies.

O motorista do Uber que me leva para a Disneylândia mora a três quadras do parque e, como todos os locais, tem desconto nas entradas. Está indo me levar e, ao mesmo tempo, encontrar-se com os dois filhos que largou lá de manhã. É viúvo, imigrante, veio de El Salvador e construiu sua vida como operário de obra em Anaheim. “Nós estamos sempre na Disneylândia”, ele me diz. “Aniversários, formaturas, nos fins de semana. É tão limpo, tão tranquilo…” "Mesmo com essas multidões, as filas?", quero saber. “Ah, é tudo tão tranquilo, tão organizado… Eu não me preocupo, sei que os meninos estão bem… Tudo é tão bonito, a gente se esquece dos problemas, das dificuldades… É um hábito, uma tradição de família, eu acho…”

Esse, o conforto – a Disney não cria produtos audiovisuais, cria mundos onde as pessoas podem se refugiar, mitologias que podem ser passadas de geração em geração. Não é à toa que ela adquiriu a Marvel e a LucasFilm, duas outras fábricas de mitologias.

E é aí que começo a ficar desconfortável – com a industrialização da imaginação, o controle obsessivo sobre todas as propriedades artísticas e intelectuais, a liberdade vigiada dos parques.

Sou realista – afinal, cubro esta indústria há três décadas e conheço bem suas engrenagens. A Disney é um líder da indústria e Walt, seu capitão. Há um poder e uma força fenomenais em criar mitos contemporâneos desta amplitude – algo muito parecido com religião, se entendermos religião como um esforço poético para compreender o mistério através de metáforas. É na hora de passar no caixa que o coração aperta.

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Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling StoneBizzJornal do Brasil e Folha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

Ana Maria Bahiana

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