Uma conversa com Carola Saavedra

24/07/2018

 

Em Com armas sonolentas, quinto romance de Carola Saavedra pela Companhia das Letras, a escritora experimenta novos possibilidades em sua ficção. Estamos diante de um romance polifônico em que o fantástico e o onírico surgem como ferramentas fundamentais para dar conta de situações de difícil apreensão.

O Blog da Companhia entrevistou a autora, que fala sobre sobre a ruptura com o realismo que marca sua obra literária e a importância do inconsciente como outra forma de conhecimento. “Eu sempre tive muito medo da loucura, e via no mundo racional uma espécie de antídoto, um lugar seguro. Porém, uma série de acontecimentos, entre eles um longo processo de análise e o nascimento da minha filha, me fizeram perceber que se eu não adentrasse o lugar do mistério, do inconsciente, ficaria a salvo, mas nunca conseguiria me aproximar desse outro saber”, diz Carola.

Confira a seguir nossa conversa na íntegra.

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Do que se trata o romance? Como ele foi concebido?

O romance gira em torno de três mulheres: Anna, uma jovem atriz em busca de fama e reconhecimento que se casa e vai morar numa pequena cidade da Alemanha, onde, sem falar o idioma, se vê cada vez mais distante do seu sonho; a melancólica Maike, que se surpreende com o próprio desejo ao se apaixonar por uma colega de faculdade, e uma terceira personagem (sem nome), que aos catorze anos sai da casa da mãe no interior de Minas para trabalhar como empregada doméstica no Rio de Janeiro. São três vidas muito distintas, mas que estão fortemente interligadas. Em comum, entre outras coisas, todas partem de uma situação de abandono, e de exílio, que pode ser geográfico, mas também emocional, e todas fazem algum tipo de viagem, que lhes permite ”voltar para casa” e se tornar quem elas realmente são.

 

Por que a escolha do título Com armas sonolentas?

É um verso do poema “Primeiro sonho”, de Sor Juana Inés de la Cruz. O poema fala sobre um tema muito comum desde a Antiguidade, que é a viagem da alma. Sor Juana vê no corpo adormecido a possibilidade de se libertar das amarras da consciência e acessar um outro tipo de conhecimento. Lembrando que em espanhol sueño significa tanto sono quanto sonho. De certa forma, não é muito diferente da psicanálise, que enxerga no inconsciente (nos sonhos, atos falhos etc.) um saber outro, mais próximo de nós mesmos, ou do xamanismo, que busca a verdade em estados alterados de consciência. Enfim, são muitas as áreas que procuram esse tipo de sabedoria. Nesse sentido, o título Com armas sonolentas remete a um poder que transcende a razão, a consciência, algo que não sabemos que sabemos. No romance, cada uma das protagonistas inicia uma viagem, uma travessia que vai exigir outro tipo de arma, as armas do inconsciente, do espírito e da insensatez.

 

No romance, todas as protagonistas são mulheres, foi uma escolha deliberada?

Sim e não. Alguns anos atrás ganhei uma coletânea organizada por uma jornalista espanhola, Laura Freixas, que reunia contos escritos por importantes autoras espanholas, e a temática era a relação mãe e filha. Me chamou atenção o prólogo, no qual Laura dizia que o tema mãe e filha, apesar da sua importância, sempre foi escasso na literatura. Procurei então romances brasileiros escritos por mulheres e que abordassem o tema e, para minha surpresa, não encontrei quase nada. A verdade é que há poucos romances (do cânone) que abordam temas considerados femininos: relações mãe e filha, aborto, perda gestacional, menstruação, menopausa, parto. Me pareceu escandaloso, e ao mesmo tempo muito sintomático, pois reproduz a ideia de que os temas femininos são apenas femininos enquanto os masculinos são universais. Tomar consciência disso foi o que me levou a pensar nesse livro, um romance sobre a maternidade, sobre o feminino, sobre as relações de afeto entre mulheres (em geral elas aparecem como rivais), e, especialmente, sobre a possibilidade de redenção e reencontro daquilo que foi silenciado. Esse foi o ponto de partida, depois a história foi tomando seu rumo independente disso, que deixou de ser a única questão, porque é sim um livro sobre mães e filhas, sobre ter tido ou não uma mãe, mas também é um livro sobre a capacidade que alguns têm de seguir em frente, apesar da pobreza, da ignorância e do abandono.

 

 

Em que este livro se diferencia de suas obras anteriores?

Para mim, ele representa uma ruptura com meus livros anteriores. Não uma ruptura total, mas uma ruptura com o realismo, com a primazia da razão. Eu sempre tive muito medo da loucura, e via no mundo racional uma espécie de antídoto, um lugar seguro. Porém, uma série de acontecimentos, entre eles um longo processo de análise e o nascimento da minha filha, me fizeram perceber que se eu não adentrasse o lugar do mistério, do inconsciente, ficaria à salvo, mas nunca conseguiria me aproximar desse outro saber, essa verdade do corpo, essa verdade que escapa nas entrelinhas. Por isso, o processo de escrita foi muito diferente. Eu sempre trabalhei com muito controle do enredo e das conexões entre as vozes narrativas, em geral eu sabia exatamente como terminaria cada livro. Neste romance eu não tinha a menor ideia de onde iria chegar, do que realmente estava acontecendo, e tudo bem, eu não precisava saber tudo. Assim, o livro foi se mostrando na medida em que ia sendo escrito, com um espaço muito maior para o sonho do que para a vigília.

 

Há, no livro, uma forte presença do fantástico — animas falam, mortos falam etc. Por que essa decisão?

Vivemos uma realidade tão absurda, em um momento em que tudo parece ruir, que sinto que o realismo não é suficiente para refletir o mundo. Sem falar no espaço digital onde tudo é ilusão e, ao mesmo tempo, a mais pura realidade. Então o elemento fantástico, ou onírico, assume para mim uma função importante (volta a assumir), a de mostrar que para a psique não faz diferença se as coisas aconteceram ou não, o que importa é que marcas elas deixaram em nós. E é também a consequência lógica numa narrativa que não faz distinção entre sonho e realidade, razão e loucura.

 

Há também muita intertextualidade ao longo do romance, por que essa escolha?

Não foi uma escolha, foi algo que surgiu naturalmente. Talvez porque a ideia base era estabelecer um diálogo com o poema de Sor Juana e também com o que ela representa, Sor Juana é a primeira intelectual latino-americana, uma mulher brilhante que se tornou freira porque era a única forma de continuar escrevendo e estudando. Sem falar que ela não teve medo de enfrentar a mentalidade da época, escreveu poemas de amor à vice-rainha, atacou nomes inatacáveis do pensamento vigente etc. Ela representa, a meu ver, toda a capacidade intelectual e criativa que foi (e ainda é) negada à mulher, uma figura essencial nessa genealogia das ideias. Não por acaso no meu romance a avó (morta) lê para a neta trechos da Respuesta a Sor Filotea, talvez o primeiro texto “feminista” da história latino-americana. Já as demais citações foram surgindo na medida em que a história se desenvolvia, por exemplo, Maike chegando no Rio de Janeiro em pleno Carnaval. Enquanto espera o bondinho, senta-se ao seu lado um sujeito fantasiado de diabo, que se apresenta como Mefistófeles, e me pareceu então natural que, sendo Maike alemã, ele citasse frases do Fausto de Goethe. Ou a recriação de Caminhando, performance de Lygia Clark, na qual ela trabalha com uma fita de Moebius, ideia que permeia o livro todo.

 

Clique aqui e assista no YouTube uma série de vídeos em que Carola Saavedra lê trechos e fala mais sobre Com armas sonolentas.

 

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