Uma esfinge decifrável

28/08/2018

Imagem: Noemi Jaffe sobre foto da Grande Esfinge de Tânis

 

Que me desculpem os pontos e as vírgulas, mas o ponto e vírgula é fundamental. Não consigo mais imaginar como escrever sem ele. A pausa que ele representa, nem longa e nem breve; o silêncio atento que ele cobra do leitor; o fôlego sem urgência para que o leitor avance para o próximo enunciado, ao mesmo tempo conectado e desconectado do anterior; a ênfase firme, mas delicada, que ele lança a cada célula da frase; a forma como, além de chamar atenção para o que se diz, ele também chama discretamente a atenção sobre si e o mistério possível de seu emprego são coisas que o transformam numa espécie de amigo querido, sem que por isso ele se torne íntimo demais. Além do mais, usar um ponto e vírgula significa, quase sempre, explorá-lo dentro de uma frase longa, outro dos recursos narrativos de que eu mais gosto e por que tenho mais admiração. Um ponto e vírgula dentro de uma frase longa representa fluxo de consciência, lembranças involuntárias, dificuldade de terminar o pensamento, sucessão de coisas como numa lista e como é lindo não conseguir terminar uma frase. Prolongá-la insistentemente porque paira a constatação difusa de que as coisas não têm mesmo, nunca, um fim possível; ir continuando, porque aquela gravata me fez lembrar de uma viagem à Itália onde fui quase feliz; de uma época em que eu tinha bem menos dinheiro que agora, e por isso acabei comprando uma gravata que só parecia chique, mas que era de um tecido meio vagabundo e o presenteado percebeu na hora, mas teve vergonha de confessar; de quando você e eu ainda achávamos que era possível comprar gravatas baratas e oferecê-las ao primo rico e exibido, o que era absurdo mas comprovava como nós dois éramos amavelmente infantis; e que o fim do nosso encontro seria inevitável, mas que poderíamos ir adiando tudo, até que tua risada de dentes pequenos virasse um coturno transoceânico me ferindo até a gengiva e nós enfim partíssemos como duas pessoas que nunca tivessem se conhecido.

É claro que o ponto e vírgula também tem usos fúteis e úteis, como separar orações coordenadas quando uma delas já possui vírgula ou para alongar a pausa de conjunções adversativas. Mas uso a pontuação mais por amor do que por necessidade, copiando Abraham Lincoln, que disse: " Com pessoas educadas, suponho, a pontuação é uma questão de regras; comigo é uma questão de sentimento. Mas devo dizer que tenho muito respeito pelo ponto e vírgula; trata-se de um rapaz bem útil". Ou Paul Collins, que achava que "o ponto e vírgula permite que frases tontas se apoiem umas nas outras como bêbados pedindo ajuda".

Mas, agora escrevendo, como costuma ocorrer quando se pensa sobre, ou quando se usa o ponto e vírgula, lembrei que meu afeto deve vir principalmente porque minha filha, que sempre amou ler e escrever, quando tinha por volta de 16 anos e já gostando muito desse sinal de pontuação, conheceu um moço que fazia esculturas em madeira, perto do ponto de ônibus que ela pegava e pediu que ele fizesse um ponto e vírgula para ela. Dá para imaginar a emoção. E até hoje, quando penso no ponto e vírgula, visualizo aquela escultura um pouco malfeita, meio bruta, não tão delicada quanto esse sinal deve ser, mas tão concreta e marrom, tão pendurada acima da porta do quarto dela, que não posso senão prezá-la ainda mais e até perdoar seu uso incorreto ou indiscriminado, até tatuado sem causa alguma, mas sempre ali, incólume, em sua dificuldade fácil, sua altivez de esfinge decifrável.

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Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falouÍrisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

 

Noemi Jaffe

Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.

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