A banca

21/11/2018

Foto: Thiago Neves / Shutterstock.com

 

“Ainda tem uns três velhinhos que vêm aqui religiosamente comprar o Tex. Um deles ainda chama de Texas. Ele pergunta: ‘E aí, chegou gibi do TEXAS?’”

A banca fica dentro de um supermercado, na esquina entre a avenida Bento Gonçalves e a rua Gonçalves Chaves, em Pelotas. Chama-se Revistaria São Francisco. É um espaço retangular, comprido, forrado de revistas nas laterais e fundo. Duas pessoas magras conseguem passar pelo corredor ao mesmo tempo. Na ponta da entrada fica Júnior do Vale, proprietário e único funcionário. Ele gosta de conversar.

(Um garoto pede dez pacotes de figurinhas do Campeonato Brasileiro.)

“Primeiro eu fui funcionário, depois sócio, depois comprei a banca. Foi quando virei proprietário que comecei isso que você está vendo aí: as estantes novas, esses espaços para os gibis, trazer coisas de colecionador, de clientes, de sebos”, Júnior me contou num sábado à tarde.

(Uma senhora com duas sacolas do supermercado leva a Guia da TV e a Mais Mais TV.)

De fato, 70, quem sabe 80 porcento da banca é só quadrinhos. São quatro ou cinco expositores com lançamentos. Tem um para super-heróis e assemelhados, outro para mangás, outro para infantis, outro para material mais adulto. E há as estantes de madeira: duas são forradas de revistas antigas, álbuns, bastante importados; outras quatro, só para capas duras.

(Um casal de adolescentes pergunta preços de mangás. Levam um para cada.)

Faz poucos anos que voltei a morar em Pelotas. Quando descobri que tinha uma banca que anunciava via Facebook a lista de gibis que recebe, duas vezes por semana, na hora em que recebe, tive vontade de voltar lá no meu eu de oito anos e informar que nosso futuro está garantido. Depois descobri que esses anúncios também iam para um grupo no WhatsApp, no que descobri a única utilidade do WhatsApp. “Chegou o bagulho!” é a grande dad joke do grupo nos dias em que a distribuidora abastece as estantes.

(Uma garota pergunta o preço do álbum de figurinhas de Naruto, o preço de cada envelope, faz contas mentais e decide: “Ah, azar, vai ter que ser.” Leva o álbum e três envelopes.)

Não compro mais os gibis que comprava aos oito anos, por isso passo na São Francisco a cada duas semanas, às vezes em intervalos maiores. Sempre me surpreendo com as estantes de material antigo. Júnior vende algumas coisas da sua própria coleção, oferece espaço para clientes venderem as suas, pega material que está mofando no sebo de um amigo e expõe. Também me disse que está presente em 60 grupos de colecionadores, via Facebook e WhatsApp, por onde vende material para todo o país. Tem sempre um notebook aberto ao lado.

(Um cara de óculos, magro, pouquíssimas palavras, compra os três álbuns de Aâma do Frederik Peeters. Comento que são muito bons. Ele não responde.)

Minha maior descoberta no expositor de antiguidades foi uma edição de adaptações do Shakespeare por Gianni de Luca, clássico que eu conhecia de comentários em livros de história mas que nunca tinha visto ao vivo – quanto mais sabia que existia uma edição brasileira. No momento estou curioso com uma edição da National Lampoon que apareceu por lá. Não tanto pela edição, mas curioso em saber quem é a pessoa de Pelotas ou região que importava National Lampoon na década de setenta.

(Uma mulher entra e pede dois oliú, do azul, e Júnior explica que parou de vender cigarros.)

Segundo Júnior, o que sustenta ele e outras bancas são os colecionadores. Os de revistas em série, como os mangás e as de super-heróis, e álbuns de figurinhas. Ele vende menos de dez Veja por semana. Caras, a mesma coisa. Há vinte anos, a revistaria chegou a vender 500 edições da Playboy em um fim de semana. A Playboy não existe mais.

(Uma senhora chega pedindo “e meus romances?” Júnior explica que, dos que tem, ela já leu. Ele não recebe mais os livrinhos estilo Sabrina. A senhora leva palavras cruzadas, que também pararam de chegar via distribuidora. Ele mesmo comprou um lote há pouco tempo, para atender a clientela.)

O selo de quadrinhos adultos Vertigo, publicado pela Panini, tem três a cinco lançamentos por mês. Júnior pede vinte exemplares de cada e a maioria fica reservada para clientes. O fato de isso acontecer com uma linha de quadrinhos adulta talvez comprove que, quem ainda vai à banca, vai por nostalgia. Tex, a propósito, deixou de ser Texas Kid no Brasil em 1957.

(Um garoto chega com as moedas contadas para pedir um, só um pacote de figurinhas do Brasileirão.)

“Ainda tem crianças lendo gibi, ainda vendo Mônica. Mas ir à banca é uma coisa estranha para as crianças de hoje.” Ainda há nove bancas em Pelotas, entre 50 e 60 nas cidades atendidas pela distribuidora que faz a ponta sul do estado. Depois daqui, é Uruguai.

(Um trintão pede trinta pacotinhos do Campeonato Brasileiro.)

E por que, para ele, as pessoas ainda não compram tudo pela internet?

Ele aponta o indicador para si, depois pra mim, e fica alternando. “Por causa disso. Enquanto derem valor a essa conversa, a essa interação, eu continuo aqui.”

***

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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